O positivo do negativo que é estar triste
Há dias assim, em que a tristeza vem de mansinho e se acomoda no nosso coração, deixando-o apertado. Não falo da tristeza que vem das coisas más que a vida nos vai reservando, mas daquela tristeza que nos acomete de vez em quando, por nenhuma razão ou por razões que só nós entendemos. Diz-se que é essa tristeza endémica que vai alimentando a alma dos artistas, mas eu desconfio que ela existe em todos nós. A diferença é que alguns lhe dão atenção e outros fogem dela a sete pés.
Eu percebo por que dela fogem alguns. Não se conhece a profundidade da tristeza, mas desconfia-se que será grande a sua fundura, o que leva a que, inadvertidamente, possamos pôr o pé fora de pé e escorreguemos para zonas perigosas. Quando lá chegamos, ao fundo da tristeza, tudo pode acontecer. Pode acontecer não conseguirmos regressar. É por isso que tantos a temem explorar, com medo de lá ficarem cativos para sempre. Ao mesmo tempo, para outros, é um perigo que vale a pena correr. É que dar ouvidos à tristeza pode trazer-nos coisas boas. Ela vai entrando na nossa vida com pezinhos de lã, guardando como objectivo combater o nosso impulso natural para a felicidade.
À primeira vista, parece coisa desagradável, impedir-se alguém de estar sempre feliz. Mas ela sabe que, para que gozemos bem os tempos em que tudo parece estar a nosso favor, precisamos de nos ir acostumando à sensação de não termos nada a nosso favor. Então, vai-nos esvaziando de nós mesmos, para que possamos ver o que de supérfluo ou de importante temos cá dentro e assim percebermos o que precisamos de manter ou de deitar fora. Assume, pois, o corajoso papel de nos desconstruir para que a reconstrução possa ser mais forte e sólida.
Mas não é só a tristeza que trabalha em nós. Para que dela consigamos retirar alguma coisa, é preciso que lhe dediquemos uma boa parte do nosso tempo, também. Importa que fiquemos a conhecer bem os seus matizes, as suas peculiares características. Frequentemente, anda acompanhada. Pode vir arrevesada de melancolia, pode misturar-se com uma raiva latente, pode até vir agarrada à felicidade. Mas temos de cuidar nunca nos entregarmos completamente a ela. O objectivo é apenas e somente retirar aquilo que de bom a tristeza tem para nos dar. O truque é encontrar alguma forma de a exorcizar. Primeiro, deixamo-la morar cá dentro durante um bocadinho demorado, para que possa ir amolecendo o coração e endurecer as paredes. Depois, fazemo-la ganhar forma física.
Já que gosta de andar acompanhada, que a façam acompanhar da imaginação. Pode ser na forma de um poema, pode ser na forma de uma canção. Pode ser numa crónica ou na forma de uma lição. Tudo isto e muito mais se pode fazer com a tristeza. Basta que não haja medo. Não serve o encómio para dizer que gosto de estar triste. Pois que não gosto mesmo nada. Mas obriguei-me sempre a tentar ver o melhor do pior. E a achar imagens positivas para coisas negativas. Para afastar a depressão, que, contrariamente à tristeza, é estéril. Porque, se deixamos a tristeza estar cá e nada fazemos, corremos o perigo de ela vir a transformar-se em depressão. E, aí, perde-se o que a tristeza tem de bom e fica-se apenas com o que a tristeza tem de mau.
Daí que vos tenha falado de paredes e profundezas, quando queria apenas falar daqueles momentos em que ficamos a sós com a nossa tristeza, a tentar perceber o que fazer com ela. A depressão fica, a tristeza vai e vem. Enquanto nos vamos entretendo a falar dela ou a fazer coisas a partir dela, vai desaparecendo, desaparecendo, até que desaparece de vez. Até ao próximo assomo.
* Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia.