"A história da língua portuguesa pode ser resumida numa frase: falamos uma língua que nasceu fora do nosso território (de nós, portugueses) e cujo futuro será em larga medida decidido fora das nossas mãos. A língua portuguesa, numa visão temporal ampla, acha-se de passagem por Portugal." A explicação do linguista Ivo de Castro remete-nos para esta verdade óbvia: a história da língua portuguesa não começou em 1143 com a formação do país, mas muito antes. Já o sabíamos, mas um livro publicado neste ano, Assim Nasceu Uma Língua, de autoria de Fernando Venâncio, vem dizê-lo de forma ainda mais clara..Sabemos que o português tem um substrato céltico, oriundo das línguas faladas pelos povos pré-romanos que habitavam a parte ocidental da Península Ibérica. Em 218 a.C., os romanos invadiram a Península e trouxeram consigo uma língua, o latim, que começou a ser usado pelas elites mas acabou por se tornar a língua usada em todo o território. Em todos os aspetos - fonética, morfologia, léxico e sintaxe - a língua portuguesa é essencialmente o resultado de uma evolução orgânica do latim vulgar trazido por colonos romanos..Após a queda do Império Romano vieram as invasões bárbaras (sobretudo suevos e visigodos). Estes povos acabaram por adotar o latim como a língua franca, mas a heterogeneidade linguística no território era grande. A presença germânica deixou numerosas palavras na língua portuguesa, sobretudo na onomástica (nomes como Rodrigo, Afonso, Álvaro, Fernando, Gonçalo, Henrique), na toponímia, o sufixo -engo (em solarengo, mostrengo) e outras palavras (guerra, elmo, bando, guardar, agasalhar entre outras)..Na obra Assim Nasceu Uma Língua, o linguista Fernando Venâncio tentou identificar o momento em que na Galécia deixou-se de falar latim, com a criação de uma língua nova, e chegou ao ano 600 d.C.. Terá sido, portanto, nessa altura que aconteceram várias modificações importantes no latim que se falava no noroeste peninsular - território que abrange a atual Galiza e uma parte do noroeste de Portugal. E foi aí que nasceu o galego, que é uma língua diretamente surgida do latim, como o leonês, o castelhano, o catalão, o occitano, o francês, o italiano..A mudança linguística mais importante foi a queda do L e do N entre vogais. Por exemplo, "salir" tornou-se "sair" e "luna" tornou-se "lua". Com essa e outras modificações forma-se uma língua específica desse território. "Se o espanhol faz volar e sonar, o italiano fará volare e suonare, e o francês voler e sonner. Em todos eles estão, pois, presentes um L e um N. O que não admira, visto as formas latinas de que eles derivam serem volare e sonare", escreve Venâncio. Só aqui será diferente. "Qualquer que seja a ortografia, é pela eliminação de L e N intervocálicos que aquela a que chamamos a nossa língua mais fundamentalmente se distingue de idiomas vizinhos.".Quando o Condado Portucalense foi formado e, a partir dele, nasceu Portugal, essa era a "língua disponível" naquele local. O galego foi, portanto, a primeira língua de Portugal, defende. E é verdade que nos habituámos a aprender na escola que existia nesta altura o chamado galaico-português (a língua usada na lírica medieval), mas Fernando Venâncio não considera que esse termo seja adequado. O português ainda não existia e só seria criado no século de Quatrocentos, diz. Só que, no momento em que essa lírica regressou à luz do dia e começou a ser estudada, no século XIX, tempo de nacionalismos vários na Europa, ninguém queria admitir que a língua usada era o galego e foi então que se inventou o termo "galego-português"..Fernando Venâncio opõe-se à ideia de que a língua galaico-portuguesa nasceu com o país, como "um passe de mágica". Na sua perspetiva, o latim não será o pai da língua portuguesa mas antes o seu avô - na geração intermédia temos o galego (uma teoria acarinhada também por outro linguista, Marco Neves, que no ano passado publicou a obra O Português e o Galego São a mesma Língua?)..A história do português é, então, "em larga medida, a história das suas tentativas de afastamento do galego", escreve Venâncio. Por isso, "denominar português qualquer variedade linguística anterior a 1400 é resvalar num anacronismo e, pelo menos, numa sofrível incongruência. Até essa data, Portugal utilizou a língua que herdara ao fazer-se independente: o galego.".Só a partir de 1400 a língua de Portugal começa a afastar-se do galego para seguir o seu caminho, diz este especialista. Nessa altura, Lisboa torna-se o centro político e cultural do país, que se distancia cada vez do norte e começa a incorporar formas do sul, num progressivo afastamento da Galiza. O sul traz consigo a influência árabe, através da parte bilingue da população, que se faz sentir sobretudo no léxico, não atingindo nenhum estrutura gramatical (são as palavras com o prefixo -al e outras palavras como armazém, açúcar, laranja, arroz, etc.)..Além disso, esse processo coincide com um outro, que é de aproximação a Espanha. Alguns dos tais L e N acabaram por ser repostos, não através do latim mas do castelhano: o que acontece entre 1400 e 1700, quando Portugal vive sob influência (a determinada altura também política) de Espanha, não é uma latinização, é uma castelhanização - que acontece em Portugal e não na Galiza..Este processo de "desgaleguização" da língua é lento, dura séculos, explica Fernando Venâncio. As expressões "língua portuguesa" e "português" só aparecem, entre nós, nos anos de 1430. Os tempos seguintes são de sedimentação, com a fixação da escrita. 1487 é o ano do primeiro livro impresso em Portugal: O Pentateuco, da Bíblia. O primeiro livro de poesia que se edita em Portugal é o Cancioneiro de Resende, de 1516. E o seguinte é Os Lusíadas, de Camões, em 1562. Antes disso, só havia cancioneiros copiados à mão. E, sim, aqui já podemos falar da língua portuguesa, a tal língua de Camões que, como organismo vivo que é, continua a evoluir, a incorporar vocábulos vindos de outras línguas, a adaptar-se continuamente aos novos tempos.