O Porto guarda a tradição liberal e continua a fazer diferente

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Celebramos, neste ano, o segundo centenário da Revolução Liberal de 1820. Uma revolução inevitável pelo contexto político-social da época, e que deu início à difícil, lenta e tormentosa fundação do Portugal moderno.

Transformara-se num protectorado dos ingleses que, depois de terem derrotado as tropas napoleónicas, liderando a resistência portuguesa, mantinham a administração do território nacional, bloqueando as carreiras no Exército (refundado por Beresford) e condicionando o funcionalismo público. Transformara-se, também, numa colónia do Brasil, elevado à categoria de reino através de uma nova identidade pluricontinental, onde a corte permanecia, onde o comércio e os portos se abriam a outras potências.

Sem a riqueza do Brasil, a contribuição que antes equilibrara a economia portuguesa sempre dependente da agricultura de subsistência, sem alternativa ou voz na nova ordem europeia, resultante do Congresso de Viena, o país via-se condenado à ruína e privado da sua soberania.

A contraversão da relação colonial com o Brasil, a subjugação a Inglaterra e a crise económica consequente, com impacto na indigente administração que resistira às invasões, gerou o clima propício ao descontentamento.

As ideias da Revolução Francesa, que tinham encontrado acolhimento em setores da burguesia urbana ainda antes das invasões, voltavam a fervilhar, e a presença dos ingleses, que tinham assentado arraiais com o seu ideário liberal, também ela contribuía para que se questionasse o regime a que mais tarde se chamou de absolutista.

Esses ventos continuavam a abalar a Europa, apesar da mão de ferro da Santa Aliança, concebida no Congresso de Viena, em que as potências que haviam derrotado Napoleão concordaram em resgatar os limites territoriais anteriores à Revolução Francesa que tinham sido dissolvidas pelas guerras, e restaurar a ordem absolutista do Antigo Regime, pela mão de Metternich.

Em Janeiro de 1820, uma revolta militar tinha imposto o regime constitucional em Espanha, consagrado na Constituição de Cádis de 1812, e levou ao poder os liberais que tinham sido perseguidos por Fernando VII aquando do seu retorno do exílio em França. Portugal fora um dos refúgios eleitos pelos liberais espanhóis, como foi o caso do general Cabanes, em que procuravam apoios em para os seus ideais revolucionários. Todos esses acontecimentos não passaram despercebidos em Portugal, e tiveram impacto nas cidades onde as notícias iam chegando, e onde a burguesia tinha um papel de relevo. Particularmente no Porto, onde a nobreza tinha menor presença e influência, que se vira invadida por desalojados das terras do interior e por desertores, e onde havia bons livreiros e os hábitos das tertúlias que trocavam as voltas à férrea censura da época.

Não admira que o Sinédrio tenha surgido no Porto. Uma sociedade secreta, impulsionada pela consternação que se seguiu à condenação à morte de Gomes Freire, formada por burgueses e por juristas, tendo como característica comum o elevado grau de cultura política e grande respeitabilidade social. Foi no seio do Sinédrio que fermentou a conjura e o ideário liberal que, garantindo a fidelidade à casa de Bragança, lhe exigia que aceitasse regressar a Portugal para reinar constitucionalmente.

O golpe militar, inspirado pelo Sinédrio, ainda que sem a participação dos seus membros, viria a eclodir em 24 de Agosto de 1820. As proclamações protestavam lealdade a D. João VI, condenavam qualquer violência ou anarquia, e faziam referência à reunião das Cortes para promulgação de uma Constituição; e logo foi constituída a Junta Provisória, que passaria a dispor da suprema autoridade em nome do rei.

Enquanto a Junta dos Governadores, em Lisboa, denunciava o horrendo crime de rebelião e confiava em que o Exército se apressaria a apagar a mancha de que a sua honra está ameaçada, e a Junta do Porto reclamava que não se tratava de uma revolta, mas de um movimento para defender a dinastia reinante das ameaças que a cercavam, o exército que saíra do Porto ia sendo aclamado por todo o país. E foi assim que a revolução chegou à capital, com a entrada triunfal e pacífica do exército revolucionário em 1 de Outubro.

Foram terríveis os anos que se seguiram à Revolução Liberal de 1820, e o país só encontrou a paz com a regeneração. Entretanto, viveu-se uma sangrenta guerra civil e inúmeras revoltas num país dilacerado e indeciso.

Se esta revolução, liberal e burguesa, era inevitável no contexto histórico, também é inevitável que tivesse eclodido no Porto. Esse liberalismo procurou na monarquia constitucional um antídoto contra a tirania dos reis absolutos e contra a tirania das maiorias democráticas: combinando as duas legitimidades, monárquica e popular, aspirava a realizar um meio-termo entre ambas, um ponto de equilíbrio entre a monarquia pura e a democracia pura, cuja forma consumada e natural seria a República, como escreveu Maria de Fátima Bonifácio.

Mas, nas décadas que se seguiram, e também durante o século XX, o ideário foi esmagado por duas forças contraditórias: pelo radicalismo crescente na Europa, com o seu ideal anticlerical da comunidade de seres iguais, e o Antigo Regime, com os seus afloramentos.

Um conflito insanável entre a macrocefalia da capital, consequência da história e do Império e pasto natural do radicalismo europeu, e o país rural, religioso, obediente e conservador; a clássica oposição entre a cidade e o campo, como escreveu Vasco Pulido Valente.

Duzentos anos depois, sem nunca ter causado problemas aos sucessivos regimes, o Porto, mais reivindicativo do que revolucionário, continua, por razão dessa diferença que se espelha nesse contraste e na comparação com outras cidades, a guardar a tradição liberal e a fazer diferente.

Presidente da Câmara Municipal do Porto

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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