Não é fácil olhar para os filmes de Leni Riefenstahl (1902-2003) e comungar da sua arte, prescindindo do ângulo da moralidade. Mas não é impossível. Susan Sontag encontrou a expressão certeira para classificar essa treva que acompanha a obra da realizadora de Hitler: "Fascismo fascinante." Com efeito, Riefenstahl alcançou, através dos seus ditos documentários, a mais alta consideração junto de qualquer cinéfilo. Isto porque esses "documentários", de que são emblemáticos O Triunfo da Vontade (1935) - e o que motiva este texto - Olympia (1938), não se coadunam com a ideia de uma realidade transparente. Digamos que é antes o primor da encenação que desperta o fascínio..Com esse mesmo filme, Olympia (dividido em duas partes: Os Deuses do Estádio e Vencedores Olímpicos), oficialmente encomendado pelo Comité Olímpico Internacional, e que "regista" os Jogos de 1936, em Berlim, a realizadora alemã ficou conhecida em todo o mundo. Partindo de uma montagem diáfana de esculturas gregas, que vão, simultaneamente, fazendo correspondência com as origens da grande prova atlética na Grécia Antiga, e enaltecendo o culto do corpo, a constituição perfeita, Riefenstahl inebria-nos o olhar com uma espécie de arquitetura prévia. Os corpos esculpidos acabam por se converter em símbolos dos ideais nazis, no estereótipo físico da raça ariana..É com este desvelo propagandístico que se lança a narrativa desportiva, abrindo as hostilidades com o emblemático gesto do acender da pira olímpica, e seguindo depois cada uma das provas... Mas, com quem se cruza, atenta, a câmara desta patriótica alemã? Jesse Owens. Um negro americano que desafia o idílio germânico, nomeadamente representado no atleta Luz Long, a quem venceu no salto em comprimento, arrecadando a medalha de ouro (no total foram quatro)..Race: 10 Segundos de Liberdade, que chega às salas na próxima semana, revela-nos aquilo que Olympia não nos poderia mostrar - as sementes da amizade destes dois atletas, que começou na pista, debaixo da mira de Hitler e Goebbels. O novo filme integra também aspetos da própria rodagem de Leni Riefenstahl, e a alegada recusa do aperto de mão do fuhrer a Owens, que em 2009 foi contrariada pelo testemunho do jornalista alemão Siegfried Mischner, afirmando ter presenciado a atitude, atrás da tribuna de honra... Estes serão, por conseguinte, os bastidores ficcionais de Olympia, um filme de estética wagneriana, mascarado de documento, que não ignorou o brilho de Jesse Owens.