O poder do cérebro

Já sabíamos que os nossos neurónios são poderosos. Mas que tinham o poder de «dar ordens» e realizar ações sem mover uma palha, só ficámos a saber agora, graças ao trabalho de Rui Costa, investigador principal do Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud. Está aberto o caminho para as neuropróteses. E para muito mais.
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Publicou recentemente na revista Nature os resultados de uma experiência segundo a qual o cérebro consegue aprender regras abstratas e, apenas com a mente, sem qualquer movimento físico, realizar ações. O que significa isto?

_Fizemos uma experiência com ratinhos, cuja atividade neural estava ligada a um computador, que controlava um som. Depois criámos uma regra arbitrária que determinava que a atividade de uns neurónios levava à produção de um som agudo e a de outros neurónios a um som grave. Se os ratinhos conseguissem a atividade cerebral que dava o som agudo tinham uma recompensa líquida açucarada, se conseguissem a atividade cerebral que produzia o som grave tinham uma recompensa sólida de comida calórica. Muito importante: os sons eram audíveis e portanto eles tinham sempre o feedback do som que a mente estava a produzir. Em poucos dias, os ratinhos aprenderam a regra e só produziam sons graves para receber a recompensa sólida: controlavam o computador apenas através da atividade cerebral. O passo seguinte foi testar o conhecimento e a intencionalidade da ação e estes comprovaram-se. Foi impressionante.

O que é que isso significa em termos práticos?

_Significa que se conseguirmos medir a atividade elétrica do nosso cérebro - a atividade dos neurónios - e ligá-la a um computador ou a uma máquina que controla qualquer coisa, o nosso cérebro muito rapidamente consegue incorporar esse computador como se fosse parte do nosso corpo e controlá-la apenas através de atividade mental, sem ser necessário movimento.

A máquina passa a ser uma extensão do corpo?

_De certa forma. O ser humano tem a representação exata de todos os instrumentos que utiliza como se fossem extensões do seu corpo - já lhe aconteceu certamente agarrar numa caneta mais grossa ou mais fina do que aquela com que costuma escrever e sentir um desconforto inicial, que depois dá lugar a uma adaptação. Perguntámo-nos então por que não dar acesso direto do cérebro ao controlo da máquina, sem estar envolvido o movimento físico, e ver o que acontece em termos de plasticidade cerebral - a tal capacidade de adaptação. Verificámos que esta é similar à de quando aprendemos a tocar piano ou a escrever no teclado de um computador. Ou seja, as competências mentais e físicas são aprendidas através do mesmo circuito cerebral: os processos e as áreas envolvidas são similares.

E como é que daí se abrem as portas para as neuropróteses?

_Uma vez que um computador pode medir a atividade cerebral, dar-lhe uma regra arbitrária, um algoritmo, que determinará que aquela atividade provoca determinada ação e o nosso cérebro aprende-a naturalmente, abre-se a possibilidade de este conseguir mover mentalmente uma prótese.

Uma das aplicações das neuropróteses seria em pessoas amputadas. Diz-se que estas continuam a sentir, por exemplo, o braço ou a perna que perderam. É o mesmo processo cerebral que está implicado?

_Sim, quando conduzimos um carro adaptamo-nos a ele. Temos noção das suas dimensões. Se mudamos de repente, sentimo-nos desconfortáveis. Ou, para perceber melhor, se quando estamos a conduzir sentimos o perigo de que alguém nos bata, encolhemo-nos, o que significa que estamos fisicamente ligados àquela máquina e a percebemos como uma extensão do nosso corpo. Ao encolhermo-nos, o carro não encolhe, mas toda a gente tem o mesmo reflexo, porque está profundamente incorporado. Mas o campo de aplicação das neuropróteses é largo: pessoas tetraplégicas ou com uma doença que as impede de se mexerem ou até pessoas sem qualquer tipo de problemas, que podem utilizar próteses para fazer outro género de coisas.

Por exemplo?

_Imagine que eu tinha um capacetezinho no meu trabalho e mentalmente consigo fazer chamadas telefónicas. Ou imagine que sou um controlador aéreo e consigo controlar diretamente todo o tráfego só com o pensamento. Há muitas coisas que podem fazer-se neste campo.

E essas ações mentais são ensinadas ou são naturalmente ativadas?

_É aprendido, mas não é instruído. O que mostramos neste estudo é que pode ser uma regra arbitrária, que o nosso cérebro consegue aprender. Se tivermos uma interação com uma máquina e uma regra que diga «se tiver mais atividade nesta área do cérebro, surge A, se for noutra, surge B», o nosso cérebro aprende isso automaticamente.

Mas a vossa experiência foi com ratinhos, que não sabem ler!

_Fizemos da maneira mais simples e funciona da mesma forma com humanos: o objetivo só é atingido ou só há uma recompensa se determinada atividade tiver lugar. Depois é deixar a pessoa ou o animal experimentar até conseguir. Quando aprendemos a andar de bicicleta, caímos e levantamo-nos, tentamos virar para aqui e para ali, até conseguir. O mesmo acontece com o cérebro.

O eixo da sua investigação tem que ver com os processos cerebrais envolvidos na tomada de decisões.

É mais sobre como agimos no mundo. A tomada de decisão é uma parte da ação. Estudamos como geramos ações novas, o que nos leva a ser criativos e a aprender a tocar piano sem nunca ter visto um piano, como é que depois refinamos as nossas capacidades para conseguirmos escrever muito bem ou pintar muito bem, por exemplo. Por outro lado, começamos a entrar nas razões para a ação: agimos para atingir um objetivo ou por hábito? Para o estudar, manipulamos os objetivos e verificamos se as ações mudam.

E quais as conclusões a que têm chegado?

_Todos os indivíduos, animais e seres humanos, aprendem a agir por intenção e por hábito e vão alternando. A pessoa pode entrar em «piloto automático» e chegar a casa sem saber como ou, aparecendo um obstáculo, decidir seguir por outro caminho. Nas ações intencionais é uma parte do cérebro que é ativada, diferente da envolvida nas ações de rotina. O que mostrámos com esta experiência foi que os circuitos cerebrais implicados neste controlo mental são os mesmos das ações físicas e têm que ver com a ação intencional.

É então a mesma área do cérebro que nos faz explorar coisas novas que é ativada nesta experiência?

_Os seres humanos mudam o ambiente onde estão, criam coisas novas e é interessante para mim perceber como é que um cérebro evolui para fazer e pensar coisas novas. Esta experiência tem que ver com isso. Imagine que tinha acesso aos meus pensamentos e determinava que cada vez que eu pensasse azul, recebia dinheiro, e cada vez que pensasse vermelho, recebia comida. Automaticamente, a certa altura eu acabaria por perceber que cada vez que tinha determinado pensamento acontecia determinada coisa e é isso que estamos a fazer: medir a atividade do cérebro, ler o que está a acontecer e depois reforçar quando acontece determinada coisa, mas arbitrariamente.

O que determina a criatividade?

_Tem que ver com criar qualquer coisa nova que viola os nossos preconceitos, o que achamos que é normal. A criatividade pode estar na forma como um porteiro aponta quem entrou e quem saiu, inventando um sistema novo que é muito mais eficiente ou pode estar na forma como uma pessoa cozinha em casa e um dia resolve deitar uma coisa lá para dentro que não vem em nenhum livro de receitas. Porque é que aquilo acontece? Há componentes genéticas, mas também uma componente educativa importante. Podemos alargar ou diminuir os nossos horizontes de variabilidade ou os nossos graus de liberdade para pensar e fazer, muito consoante a sociedade em que estamos.

A crença de que apenas utilizamos dez por cento do cérebro é um mito ou é verdade?

_Às vezes podemos utilizar menos, outras vezes mais, mas cem por cento seria impossível, porque o cérebro tem limites do que consegue em termos de atenção. Pode parecer estranho dizer isto, mas as sinapsezinhas entre neurónios estarem todas ativas consome muita energia. Quando está a escrever muitas horas seguidas, de certeza que, no fim, sente uma exaustão maior do que se for correr uns quilómetros. Como é que se explica? O consumo de energia é mesmo incrível e por isso usar o cérebro a cem por cento ou lá perto não é compatível com a condição humana. Além disso, há vantagens nos erros do cérebro: em não nos lembrarmos de tudo, por exemplo. Eu tinha uma memória fabulosa, mas percebo as vantagens de me esquecer de coisas, porque há coisas novas que entram e que são mais importantes na vida atual.

Mas podemos otimizar melhor as nossas capacidades mentais?

_É óbvio que há formas de utilizar o cérebro de uma maneira mais sustentável. Por exemplo, hoje não se exige de um atleta que corra quilómetros com uma lesão muscular, mas ninguém pensa que o cérebro também pode ter uma rutura muscular. E, no entanto, pode. Andamos muitas vezes lá perto e as pessoas não percebem isto. A mim faz-me confusão. Se alguém se lesionar no joelho por correr muito, diz-se coitado, se se lesionar numa parte do cérebro e tiver uma rutura e sofrer uma depressão é porque é fraco, não aguenta, etc. e tal. As pessoas deviam perceber que se trata igualmente de danos físicos, conseguimos medi-los, ver se há menos sinapses, mais sinapses, se houve células que morreram ou estão atrofiadas, se há menos neurotransmissores... É certo que é mais difícil visualizar em termos de imagem do que um joelho, mas já não estamos tão longe assim e portanto é fundamental a utilização do cérebro de uma forma sustentável.

E como é que isso se faz?

_Pode querer dizer reformular as formas de ensino ou a organização do trabalho para atingir melhores resultados, com um esforço menor. Um grande impacte para a saúde em África foi a purificação da água, maior do que qualquer medicamento poderoso. É importante descobrir coisas sobre as doenças mentais, mas também é fundamental percebermos as formas de as prevenir ou de monitorizar o cérebro como monitorizamos o joelho. Não é normal que alguém tenha uma dor enorme no joelho e lhe digam para correr mais, mas com o cérebro faz-se isso: no trabalho, na família. E, portanto, a minha esperança é que as pessoas mudem a atitude em relação ao cérebro como órgão. Fala-se da importância de mudar os hábitos alimentares, mas ninguém fala da importância de mudar os hábitos de utilização do cérebro.

[2012-03-18]

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