O pior cego é o que não reaprende a viver

Samuel Natário cegou aos 26 anos devido a um quisto no cérebro. Oito anos depois ultrapassou os obstáculos e reaprendeu a viver uma nova rotina depois de perder a visão
Publicado a
Atualizado a

Yolo, um labrador de pelo amarelo, acompanha Samuel Natário para todo o lado desde que teve de reaprender a viver sem a visão. "Isto foi um pouco repentino. Comecei a perceber que estava a ver pior de um olho", relembrou.

Foi ao oftalmologista mudar a graduação mas quando os óculos novos chegaram já a visão tinha piorado. Só mais tarde é que os médicos perceberam que se tratava de um problema neurológico, devido a um quisto aracnóideo junto do cérebro que tinha tocado no nervo ótico.

Foi operado mas a cegueira total chegou depois da cirurgia. "Evidentemente não foi fácil. Tive aquele processo de luto que temos de ter. Estive por volta de uns seis meses e foi complicado porque é perder uma faculdade, é perder completamente um sentido", contou, relembrando que foi um médico que o ajudou a seguir em frente. "As palavras dele foram as seguintes: tu tens de perceber que o céu já te caiu em cima, pior não te pode acontecer. Logo, a partir de agora, o melhor que tens a fazer é aprender a viver assim, reformular, reaprender. E era o que eu precisava de ouvir", garantiu.

Um mundo novo

Seguiu em frente e descobriu um mundo novo quando entrou no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos em Lisboa. "Basicamente reaprendi quase tudo. Reaprendi a mexer com um computador, cozinhar em segurança e, o mais importante de tudo, a ganhar autonomia na rua. Aprendi a usar uma bengala, a apurar o sentido de orientação. O ponto-chave é esse", detalhou.

O centro está focado na reabilitação de pessoas com cegueira adquirida ou baixa visão com o objetivo de lhes dar autonomia e independência.

Isabel Pragana, diretora do centro, explica que é naquele espaço que, em poucos meses, quem não nasceu cego aprende de tudo um pouco. "Como arranjar o peixe, como pôr a mesa, como levantar a mesa, como levantar a loiça, como fazer o uso dos talheres, como despejar a água no copo, como reconhecer se é água, se é chá", exemplifica.

A diretora do centro relata que aprender a encarar o mundo de forma diferente é um processo difícil. "A chegada é sempre muito emotiva e é pautada por diferentes fases. Do questionamento, porquê a mim. Depois podemos ter uma fase de revolta, de angústia, de tristeza - de profunda tristeza, diria mesmo".

Isabel Pragana relembra que o fim da reabilitação também é desafiante porque "a saída para o desconhecido tem as suas resistências".

Ó pai, mas tu vês!

Para ajudar na reintegração é importante ter um objetivo delineado. No caso do Samuel havia a possibilidade de um trabalho na Autoeuropa. Já tinha passado pela empresa na zona de produção antes de cegar e voltou para o departamento de comunicação da empresa. "O regresso ao trabalho e as rotinas que consideramos aborrecidas foram e são muito importantes", garantiu.

Além do trabalho, Samuel está a fazer licenciatura em Serviço Social. Em casa faz também uma vida normal, sobretudo com a filha de seis anos. "Para a minha filha, o pai é normal. A minha filha às vezes discute comigo que eu consigo ver. Diz-me: "Ó pai, mas estás a fazer isso? Mas tu vês! Mas tu consegues fazer tudo!"", contou.

Quando sai à rua, Samuel vai sempre acompanhado por Yolo, um cão guia treinado nos Estados Unidos. Recebe as ordens em inglês mas Samuel garante que "ele percebe tudo".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt