O pior cego é o que não reaprende a viver
Yolo, um labrador de pelo amarelo, acompanha Samuel Natário para todo o lado desde que teve de reaprender a viver sem a visão. "Isto foi um pouco repentino. Comecei a perceber que estava a ver pior de um olho", relembrou.
Foi ao oftalmologista mudar a graduação mas quando os óculos novos chegaram já a visão tinha piorado. Só mais tarde é que os médicos perceberam que se tratava de um problema neurológico, devido a um quisto aracnóideo junto do cérebro que tinha tocado no nervo ótico.
Foi operado mas a cegueira total chegou depois da cirurgia. "Evidentemente não foi fácil. Tive aquele processo de luto que temos de ter. Estive por volta de uns seis meses e foi complicado porque é perder uma faculdade, é perder completamente um sentido", contou, relembrando que foi um médico que o ajudou a seguir em frente. "As palavras dele foram as seguintes: tu tens de perceber que o céu já te caiu em cima, pior não te pode acontecer. Logo, a partir de agora, o melhor que tens a fazer é aprender a viver assim, reformular, reaprender. E era o que eu precisava de ouvir", garantiu.
Um mundo novo
Seguiu em frente e descobriu um mundo novo quando entrou no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos em Lisboa. "Basicamente reaprendi quase tudo. Reaprendi a mexer com um computador, cozinhar em segurança e, o mais importante de tudo, a ganhar autonomia na rua. Aprendi a usar uma bengala, a apurar o sentido de orientação. O ponto-chave é esse", detalhou.
O centro está focado na reabilitação de pessoas com cegueira adquirida ou baixa visão com o objetivo de lhes dar autonomia e independência.
Isabel Pragana, diretora do centro, explica que é naquele espaço que, em poucos meses, quem não nasceu cego aprende de tudo um pouco. "Como arranjar o peixe, como pôr a mesa, como levantar a mesa, como levantar a loiça, como fazer o uso dos talheres, como despejar a água no copo, como reconhecer se é água, se é chá", exemplifica.
A diretora do centro relata que aprender a encarar o mundo de forma diferente é um processo difícil. "A chegada é sempre muito emotiva e é pautada por diferentes fases. Do questionamento, porquê a mim. Depois podemos ter uma fase de revolta, de angústia, de tristeza - de profunda tristeza, diria mesmo".
Isabel Pragana relembra que o fim da reabilitação também é desafiante porque "a saída para o desconhecido tem as suas resistências".
Ó pai, mas tu vês!
Para ajudar na reintegração é importante ter um objetivo delineado. No caso do Samuel havia a possibilidade de um trabalho na Autoeuropa. Já tinha passado pela empresa na zona de produção antes de cegar e voltou para o departamento de comunicação da empresa. "O regresso ao trabalho e as rotinas que consideramos aborrecidas foram e são muito importantes", garantiu.
Além do trabalho, Samuel está a fazer licenciatura em Serviço Social. Em casa faz também uma vida normal, sobretudo com a filha de seis anos. "Para a minha filha, o pai é normal. A minha filha às vezes discute comigo que eu consigo ver. Diz-me: "Ó pai, mas estás a fazer isso? Mas tu vês! Mas tu consegues fazer tudo!"", contou.
Quando sai à rua, Samuel vai sempre acompanhado por Yolo, um cão guia treinado nos Estados Unidos. Recebe as ordens em inglês mas Samuel garante que "ele percebe tudo".