O pintor português
Há uns dias vesti uma bata branca que julguei ser de um médico amigo que se esquecera dela lá em casa. Senti-me mentalmente mais ágil, mais capaz de me concentrar no que estava a fazer. Até me apeteceu comprar ações da Brisa, motivado pela lucidez extraordinária deste meu novo foco mental. Infelizmente, estes poderes especiais detetaram logo o engodo: aquilo, a OPA, é uma via verde para a família Mello; os outros investidores correm o risco de deixar a pele no asfalto.
Estava eu nisto e às voltas num site de apostas - mais transparente do que muitos negócios de Bolsa - quando a minha mulher entrou na sala e fez-me desistir de tudo o que congeminara até ali. "Olha que giro - disse ela -, vestiste a bata do pintor!" Nesse instante, foi-se a superioridade clínica que havia em mim. Minguou o poder de concentração. Fiquei reduzido ao que era: um modesto acionista português dessa empresa mirabolante que se chama Zona Euro.
Aquela minha súbita força que me galgara até ao cérebro, e depois se desvanecera, tinha uma razão de ser. Não era Viagra, nem químico nenhum. O doping que me fizera sentir mais capaz do que na realidade sou só tem uma explicação científica: a roupa que vestimos produz um efeito direto nas nossas capacidades cognitivas, acaba de concluir um estudo da Kellog School of Management.
As roupas, percebeu o reputado cientista dr. Galinsky, invadem-nos o corpo e a mente, deixam-nos num estado psicológico diferente, mais ou menos capazes, mais ou menos dotados. Modestamente, já o tinha captado, sem no entanto ter a genialidade de verbalizar a teoria: ao domingo, sinto-me sempre um trapo porque visto os trapos que andam lá por casa. Quando vesti a bata do médico, aconteceu-me o contrário: iluminei-me; quando soube que, afinal, o agasalho era do pintor, voltei a sentir-me encostado à parede - um troca-tintas português no meio da Grande Recessão.
Não sei se é também o efeito da roupa mais quente - a que se junta o ambiente de Frankfurt -, que faz que Vítor Constâncio pareça um alemão de cepa quando hoje fala sobre Portugal. Há qualquer coisa que se apodera dele, olha-nos de cima para baixo, sem contemplações e proximidade. Imagino o que aconteceria a Constâncio se, por engano, vestisse o tailleur da Sr.ª Merkel: Portugal seria pulverizado do mapa e ele sempre de mãos limpas e cara lavada.
Ocorreu-me o mesmo com aquele senhor austríaco da troika que sugeriu o fim puro e simples dos subsídios de férias e de Natal. Parece-me que ele deve ter vestido uma roupinha esquisita qualquer. Não arrisco dizer qual. Há mais duas alternativas: ou esta gente não sabe como se sobrevive hoje em Portugal (35,5% de desemprego jovem, um número magrebino, contra 8,3% na Áustria) ou então sabe e não lhe interessa nadinha.