"O pesadelo de Amesterdão"
A cidade é outra durante a noite. A velocidade e a quantidade de ciclistas atarefados diminui significativamente. Os destinos são também outros: muda-se de bairro, em função da animação noturna que oferece. Os canais deixam de ser atração e passam a ameaça. Amesterdão de noite é muito diferente de Amesterdão de dia.
Procurar compreender o que é diverso com a mesma lente, intervir sobre o distinto como se nada o diferenciasse, transformar o diferente em igual, são exemplos das práticas mais comuns na governação das cidades. Trata-se de uma forma de exercer o monopólio da uniformização, característico do estado moderno e da administração pública, tal como a conhecemos. A simplificação é, de facto, a grande ameaça das democracias, como bem lembra Daniel Innerarity no seu livro mais recente: "Una teoria de la democracia compleja" (Ed. Galaxia Gutenberg, 2020). Ou como o próprio me explicava, recentemente, num jantar em Aveiro: "não há melhor exemplo do perigo da simplificação do que o exercício das lideranças populistas". O receio da complexidade, característica indiscutível da governação contemporânea, cria problemas sérios.
Ainda assim, a cidade ocupa hoje o lugar da experimentação do futuro: do conflito, do poder, da violência, da repressão, da vigilância, da falta de privacidade, do consumo desenfreado, da poluição, mas também da descarbonização, da interculturalidade, da inovação em políticas públicas, da participação cívica, do ativismo transformador, da acessibilidade inclusiva, da colaboração. As cidades são hoje exemplo de aprendizagem e inovação mais rápida do que é possível acompanhar! Vejam-se as cool cities, as resilientes, as inovadoras, as techies, as integradoras, as verdes, as novas, as smart, as de identidade, as da mobilidade, as amigas da criança, do futuro, dos idosos, de tudo! No entanto, inova-se menos - muito menos - nos modelos de governação urbana, na democracia local e nos desenhos institucionais.
Há exceções: veja-se o caso de Amesterdão. A cidade da luz e a cidade das sombras têm diferenças: ritmos, preferências, comportamentos, vivências, necessidades distintas. Ao Mayor da Cidade, Amesterdão decidiu associar um Nightmayor - aquele que cuida da cidade da noite (ironicamente próximo de quem cuida dos pesadelos: nightmare em inglês). A experiência é, hoje, copiada em várias cidades europeias. Trata-se de um exemplo simples de como assumir na governação das cidades a sua complexidade intrínseca, já que não há governação sem conhecimento sobre a cidade. Sem o conhecimento de quem a vive, onde a vive, quando a vive e como a vive.
Pró-reitor da Universidade de Aveiro