O perigo da desintermediação política
Já aqui escrevi sobre a pressão do tempo nas nossas democracias, um dos nossos maiores desafios. Com uma economia digital que consegue resolver cada vez mais problemas em cada vez menos tempo, estamos a criar como que uma geração de impacientes, incapaz de lidar com a espera, com o atraso, com a falta de imediatismo - terreno fértil para populistas de resposta simples para problemas complexos e bem mais complicado para os defensores da democracia liberal, que acreditam em procedimentos e instituições e contrapesos.
Esse contexto desafiante está igualmente relacionado com o tema que aqui trouxe na semana passada, o dos algoritmos capazes de tomar decisões políticas de forma desapaixonada, meramente lógica, sem emoções ou interferências políticas.
No artigo da semana passada foquei essencialmente as questões da privacidade, a propósito do algoritmo holandês que permite ao Estado identificar que cidadãos são mais propensos a cometer fraude, mas deixei igualmente claro, fazendo referência a Yuval Harari, que esses algoritmos criavam igualmente pressão no sistema político, não sendo de surpreender que possam vir a ser desejados pelas pessoas como substitutos dos políticos: para quê políticos corrompíveis ou sectários se podemos ter computadores a tomar decisões meridianas e lógicas?
O filósofo Daniel Innerarity, um dos 25 grandes pensadores do mundo segundo o Le Nouvel Observateur, falava há uns dias numa entrevista ao El País dessas utopias que sugerem a criação de dispositivos, que podem bem ser estes algoritmos, capazes de agregar todas as microvontades do eleitorado e, sem qualquer deliberação ou intervenção humana ou política, definir as políticas necessárias ao cumprimento dos nossos desejos.
No fundo, acrescento eu, teríamos uma atualização do conceito de democracia direta, com máquinas a decidir, sem intermediação, sem deputados ou partidos, o essencial das políticas públicas: seria estender à política a desintermediação permitida pela economia digital (o que gera um outro desafio, já cristalizado no nosso tempo: a assimetria de informação entre regulador e regulado, entre máquinas e homens).
Como é evidente, esta utopia, este convite à democracia direta alicerçado no poder exponencial dos algoritmos, cria uma pressão nas democracias liberais, que assentam em procedimentos, instituições e contrapesos mas também em intermediação. Porque não há muito de positivo nessa ideia de desintermediação política.
Como refere Innerarity, a pura espontaneidade da agregação de vontades individuais através de telas de computador não permite corrigir os vieses existentes na sociedade nem permite defender os interesses e valores que não podem ser aplicados numa sociedade que não pode entendida como mero confronto, combate, onde um tem de ganhar e outro de perder.
Advogado