Por mais irritante que se apresente ao leitor, a maior parte dos jornalistas - este, infelizmente, incluído - nem sempre conseguem fugir a expressões do tipo "o senhor X terá dito", "a senhora Y terá cometido", "o alegado crime", "o suposto favorecimento" e por aí adiante. É a ditadura do condicional. Na atualidade jurídico-político-partidária brasileira, depois do show do solta Lula, prende Lula do último domingo, o caso é ainda mais grave: a imprensa depara-se com o passado do condicional ou, como se lê nas gramáticas brasileiras, o futuro do pretérito..Afinal, Lula teria sido condenado. E alegadamente foi preso. Porque, pelos vistos, pode ser solto a qualquer momento por via dessa figura do habeas corpus, cuja principal função é deixar tudo incerto, até o passado. Por alguma razão no Brasil se diz isso mesmo: "Aqui até o passado é incerto.".A frase fora usada em força pela imprensa brasileira em 2014. Naquele ano, o sistema financeiro nacional arriscou pagar 150 mil milhões de reais (à volta de 33 mil milhões de euros) aos seus clientes por nos anos 80 e 90 do século XX os bancos terem congelado as poupanças de toda a gente em obediência a dois planos do governo de José Sarney e a um plano do governo Collor de Mello..Ao longo de 25 anos, milhões de particulares e de empresas foram processando os bancos e vencendo em todas as instâncias até chegarem, naquele 2014, ao Supremo Tribunal Federal, cujos 11 juízes analisariam a constitucionalidade, ou não, dos planos do governo em causa. Os bancos no banco dos réus por crimes, ou talvez não, efetuados nas incertezas do passado..Meses depois, a propósito do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, um projeto do governo de Dilma Rousseff, que investigou as violações aos direitos humanos no período do regime militar, por entre elogios de organismos internacionais e de instituições académicas ao texto, houve críticas contundentes de militares e de setores da direita..Argumentaram que o relatório, "uma farsa", enfatizou o papel da tortura e esqueceu o papel dos terroristas que teriam matado "126 civis e militares no período" não com o objetivo de lutar pela democracia mas sim de instituir "uma nova Cuba"..Na imprensa, dada a disparidade de versões sobre o que aconteceu décadas antes, resumiu-se tudo com a frase-padrão: "No Brasil até o passado é incerto.".A tal frase, que é atribuída a Pedro Malan, o ministro das Finanças de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que ao chegar ao governo abriu os armários das contas públicas passadas e se deparou com incontáveis e imprevisíveis esqueletos, foi lembrada também a propósito, imagine-se, do VAR..No Mundial do Chile, em 1962, o lendário lateral Nilton Santos, depois de cometer penálti sobre o espanhol Collar num jogo decisivo, andou dois passinhos para fora da grande área, de maneira a enganar o árbitro. E enganou. Resultado: o Brasil ganhou e acabou campeão do mundo dias depois. Com o VAR, a malandragem de Nilton seria detetada, o penálti seria provavelmente convertido e o campeão seria eventualmente outro..Oito anos depois, no México 1970, nas meias-finais com o Uruguai, Pelé sofreu uma pisadela no tornozelo recém-operado - mais ou menos o que aconteceu com Neymar na partida com o México na semana passada. Só que, ao contrário do craque de hoje, que se rebolou no chão, Pelé preferiu esperar uma distração do árbitro para retaliar com uma brutal cotovelada no defesa. Com o VAR, seria expulso e deixaria a seleção brasileira órfã na final com a Itália. Sem o seu líder e inspiração, o Brasil venceria o título?.Se o VAR existisse, portanto, os canarinhos em vez de se orgulharem do seu penta podiam ostentar "apenas" um tri, alguém escreveu. Aí sim, caíram o Carmo e a Trindade..Que a incerteza do passado baralhe o sistema judicial, atormente as finanças públicas ou ataque a memória dos que lutaram pela democracia, ainda se aguenta. Agora que diminua as glórias da seleção, a maior embaixadora da história do Brasil, isso sim, é inaceitável.
Por mais irritante que se apresente ao leitor, a maior parte dos jornalistas - este, infelizmente, incluído - nem sempre conseguem fugir a expressões do tipo "o senhor X terá dito", "a senhora Y terá cometido", "o alegado crime", "o suposto favorecimento" e por aí adiante. É a ditadura do condicional. Na atualidade jurídico-político-partidária brasileira, depois do show do solta Lula, prende Lula do último domingo, o caso é ainda mais grave: a imprensa depara-se com o passado do condicional ou, como se lê nas gramáticas brasileiras, o futuro do pretérito..Afinal, Lula teria sido condenado. E alegadamente foi preso. Porque, pelos vistos, pode ser solto a qualquer momento por via dessa figura do habeas corpus, cuja principal função é deixar tudo incerto, até o passado. Por alguma razão no Brasil se diz isso mesmo: "Aqui até o passado é incerto.".A frase fora usada em força pela imprensa brasileira em 2014. Naquele ano, o sistema financeiro nacional arriscou pagar 150 mil milhões de reais (à volta de 33 mil milhões de euros) aos seus clientes por nos anos 80 e 90 do século XX os bancos terem congelado as poupanças de toda a gente em obediência a dois planos do governo de José Sarney e a um plano do governo Collor de Mello..Ao longo de 25 anos, milhões de particulares e de empresas foram processando os bancos e vencendo em todas as instâncias até chegarem, naquele 2014, ao Supremo Tribunal Federal, cujos 11 juízes analisariam a constitucionalidade, ou não, dos planos do governo em causa. Os bancos no banco dos réus por crimes, ou talvez não, efetuados nas incertezas do passado..Meses depois, a propósito do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, um projeto do governo de Dilma Rousseff, que investigou as violações aos direitos humanos no período do regime militar, por entre elogios de organismos internacionais e de instituições académicas ao texto, houve críticas contundentes de militares e de setores da direita..Argumentaram que o relatório, "uma farsa", enfatizou o papel da tortura e esqueceu o papel dos terroristas que teriam matado "126 civis e militares no período" não com o objetivo de lutar pela democracia mas sim de instituir "uma nova Cuba"..Na imprensa, dada a disparidade de versões sobre o que aconteceu décadas antes, resumiu-se tudo com a frase-padrão: "No Brasil até o passado é incerto.".A tal frase, que é atribuída a Pedro Malan, o ministro das Finanças de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que ao chegar ao governo abriu os armários das contas públicas passadas e se deparou com incontáveis e imprevisíveis esqueletos, foi lembrada também a propósito, imagine-se, do VAR..No Mundial do Chile, em 1962, o lendário lateral Nilton Santos, depois de cometer penálti sobre o espanhol Collar num jogo decisivo, andou dois passinhos para fora da grande área, de maneira a enganar o árbitro. E enganou. Resultado: o Brasil ganhou e acabou campeão do mundo dias depois. Com o VAR, a malandragem de Nilton seria detetada, o penálti seria provavelmente convertido e o campeão seria eventualmente outro..Oito anos depois, no México 1970, nas meias-finais com o Uruguai, Pelé sofreu uma pisadela no tornozelo recém-operado - mais ou menos o que aconteceu com Neymar na partida com o México na semana passada. Só que, ao contrário do craque de hoje, que se rebolou no chão, Pelé preferiu esperar uma distração do árbitro para retaliar com uma brutal cotovelada no defesa. Com o VAR, seria expulso e deixaria a seleção brasileira órfã na final com a Itália. Sem o seu líder e inspiração, o Brasil venceria o título?.Se o VAR existisse, portanto, os canarinhos em vez de se orgulharem do seu penta podiam ostentar "apenas" um tri, alguém escreveu. Aí sim, caíram o Carmo e a Trindade..Que a incerteza do passado baralhe o sistema judicial, atormente as finanças públicas ou ataque a memória dos que lutaram pela democracia, ainda se aguenta. Agora que diminua as glórias da seleção, a maior embaixadora da história do Brasil, isso sim, é inaceitável.