"O Papa Francisco diz o que Óscar Romero dizia"

O DN recupera a entrevista que fez ao bispo auxiliar de São Salvador publicada a 21 de maio de 2013. Monsenhor Gregorio Rosa Chávez esteve então em Portugal a convite dos Missionários da Consolata para falar do martírio de Óscar Romero, arcebispo da capital de El Salvador assassinado em 1980, que hoje foi canonizado no Vaticano. Na altura, tinha sido reaberto o processo de beatificação.
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O Papa acaba de reabrir o processo de beatificação do monsenhor Óscar Romero, arcebispo de São Salvador assassinado em plena missa em 1980. O que significa esta decisão para El Salvador?

Era algo esperado há muito tempo. Já passaram mais de 30 anos desde a sua morte e o processo de canonização e beatificação foi iniciado em 1990. Com o Papa Francisco as coisas parecem mais fáceis.

Conhecia pessoalmente Romero?

Conheci-o quando tinha 14 anos. Era sacerdote na minha diocese. Depois entrei no seminário e trabalhei com ele um ano, ainda estudante. Quando se tornou arcebispo, em 1977, colaborei com ele no campo da comunicação social. No seu diário aparece muitas vezes o meu nome, porque éramos amigos.

Que tipo de pessoa era?

Uma pessoa muito simples, bastante tímida. Mas que se transformava quando estava diante dos microfones. É impressionante a diferença que havia entre o Romero do dia a dia e o Romero dos microfones, proclamador da palavra.

Porque foi tão importante?

Há duas imagens de Romero, a real e a mitológica, a manipulada. Muita gente conhece-o como revolucionário, numa imagem que era aproveitada pelos dirigentes de esquerda, os movimentos populares... Mas havia o Romero real que, antes de tudo, era sacerdote. Que procurou sempre responder às chamadas de Deus, às vezes muito difíceis para ele. Um homem da Igreja, profundamente espiritual, fiel ao seu povo. Um homem que descobriu que o povo precisava de um pastor, de alguém para acompanhar o seu sofrimento, que o iluminasse e consolasse. Foi o que fez: consolou o povo, iluminou-o e lutou com ele pela sua liberdade, pela sua dignidade e direitos. E por isso deu a vida.

Estava na missa em que foi morto?

Estava muito próximo, a celebrar outra missa no seminário. Ao terminar, aproximou-se o porteiro a dizer: "Feriram Romero." Anunciei aos seminaristas a notícia e fui diretamente para a clínica, para onde tinha sido levado, mas já estava morto, com os seus paramentos cheios de sangue. Morreu quando terminava a homilia. Foi esse o momento do disparo. Temos a gravação da homilia e o disparo aparece na gravação. Há também fotos, porque era uma missa pela mãe de um jornalista muito amigo de Romero. São 14 fotos a preto e branco até ao momento em que aparece já o seu corpo sem vida.

Encontraram os responsáveis?

Quando Romero morreu, em 1980, estava a começar a guerra civil, que terminou em 1992, com a assinatura do acordo de paz. Este previa a criação de uma comissão da verdade. Há um documento quase completo sobre como tudo aconteceu, que diz que o assassinato foi organizado pelo fundador do partido ARENA [de direita], que depois esteve no poder durante 20 anos (1989 a 2009). Sabe-se como tudo foi preparado, de onde partiu a ordem e como foi informado que a missão estava cumprida. Só há uma questão que está pendente: quem disparou. Há várias versões mas nenhuma conclusão definitiva.

Mais de 20 anos depois do final da guerra, como está o país?

Em 1996, o papa João Paulo II visitou El Salvador pela segunda vez. Na primeira visita, em 1983, estávamos em plena guerra e ele quis ir ao túmulo de Romero, contra a vontade do Governo. Antes da segunda visita, os bispos fizeram um documento que perguntava: a que país vem o papa. Era um país que tinha assinado a paz, mas não tinha a vivência quotidiana da paz. A pobreza tinha aumentado, a insegurança tinha aumentado e a violência continuava presente. Eu acrescentaria outro ponto: um país que assinou a paz mas não estava reconciliado. Esta realidade continua ainda hoje. Um país com problemas de justiça, desemprego, pobreza, e um país que ainda não concluiu o processo de reconciliação.

Que papel tem o Presidente Maurício Funes, eleito pelo partido da antiga guerrilha?

Antes de ser Presidente, Funes era o jornalista mais importante do país, pela sua valentia, conhecimento da realidade e compromisso com a justiça. Chega a Presidente sem ser membro do partido. E na noite do triunfo declara que vai ter como modelo Romero. Antes dele o Governo tinha sido condenado pelo tribunal interamericano dos direitos humanos pelo caso Romero, mas ignorou-o. Funes tem cumprido a condenação. Um dos pontos era reconhecer publicamente a culpa do governo, ele fê-lo. Outro era pedir perdão ao país, à igreja e à família. Ele fê-lo.

Recentemente, disse que apoiava a causa da beatificação de Romero e que iria a Roma dizê-lo ao Papa. Em breve estará com Francisco. Tudo parece preparado para que possamos ter essa grande decisão da beatificação de Romero. Qual a importância de um Papa latino-americano?

Conheço pessoalmente Francisco e gostaria de dizer que o que vemos agora na televisão era o que antes víamos enquanto pároco, bispo e cardeal. O Papa esteve na redação do Documento de Aparecida (2007), que tem as linhas para a igreja latino-americana, e está a levar ao mundo essa experiência. A de uma Igreja viva, próxima das pessoas, livre. A Igreja que Romero deixou. Se analisarmos o que diz Francisco, vemos que era o que dizia Romero, com a diferença que a sua audiência é global. Acho que chegou a hora de Romero, da sua glorificação.

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