"O palco liberta-me, o estúdio aprisiona-me"

O espetáculo que traz Vanessa da Mata de volta a Portugal chama-se <em>Delicadeza</em>. Ao longo da conversa (eletrónica), a cantora - e escritora - fez questão de somar outras características: frontalidade, convicção e o tempero doce que já lhe conhecemos da voz
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Sete discos em 14 anos ajudaram Vanessa da Mata a conquistar o seu lugar na linha da frente da música do Brasil. Mesmo com a crise, de que fala mais adiante, nunca baixou, em vendas, do disco de ouro, e soma quatro platinas e uma dupla platina. Confessa preferir o palco ao estúdio, gostaria de cantar o nordestino Luiz Gonzaga como fez - exemplarmente - com o carioca Tom Jobim. Quer voltar à escrita. E gosta de regressar à sua terra natal, Alto Garças. Já no que toca ao momento político, deteta-se um sentimento que não anda longe da vergonha... Tudo sem meias-palavras.

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O que tem feito desde a edição de Segue o Som? Exclusivamente shows ou já começou a preparar um novo disco?

Agora, estou na digressão do disco Segue o Som. Normalmente, depois da edição do disco, vêm a divulgação, os ensaios e, por fim, entramos nos concertos, juntamente com a preparação de músicas para um próximo trabalho. Além disso, tenho-me apresentado também com o show Delicadeza, que é um trabalho totalmente diferente. Ainda não consegui escrever um novo livro. E uma coisa que não faço há muito tempo - tirar férias... Já estou a pensar nisso, também.

Quais são as diferenças fundamentais no seu dia-a-dia, entre a fase de afirmação artística e o seu tempo atual?

Eu acho que um artista nunca é totalmente consagrado, por mais que o público lho "diga". Eu tento sempre fazer um disco melhor do que o anterior. E isso é sempre difícil... Existem grandes diferenças entre as fases. No começo, existia muito medo e insegurança, porque eu não sabia como os produtores iam lidar com o meu trabalho. Hoje em dia, já consigo determinar melhor como serão os discos, para onde eu quero que a minha carreira ande. Já tenho condições de escolher melhor quem será o produtor, de acordo com as suas características e do que eu estou a planear para o disco.

Passados estes anos, e continuando a compor boa parte do que canta, sente-se mais autora, mais intérprete ou considera que está tudo ligado?

Eu acho que as duas carreiras estão extremamente interligadas. Não é apenas uma carreira de letrista, trata-se também da melodia, da composição. Quando eu faço a melodia, a cantora está cantando dentro de mim. Aí, já vejo se funciona, se está a ficar bom. Então, são coisas que não se separam.

O que lhe serve de inspiração para compor e para escrever?

Eu tenho uma grande avidez pela vida, pelo conhecimento. Eu presto atenção ao ser humano, às suas dificuldades, à sua desorganização e à sua organização. Tenho uma necessidade de compor o ser humano na minha cabeça. Isso não é controlar nada, mas simplesmente fazer uma vida acontecer dentro da minha cabeça. Eu tenho necessidade de compor aquilo no papel - é quase como registar algo que se está a passar ali. E é lógico que cada um tem a sua leitura do outro. Isso, para mim, é mais um traço do existir. Mais uma possibilidade da existência. E é como se essa história se encaixasse na vida de tantas pessoas. Quando eu vejo alguém cantando e achando que aquilo tem que ver com a sua vida, é como se essa pessoa também compusesse em conjunto comigo.

Tem alguma disciplina diária, alguma rotina que possa partilhar com os seus fãs?

Para escrever músicas, eu gosto que seja fora de casa. O livro A Filha das Flores foi escrito muito dentro de casa, porque era uma imersão intensa e muitas vezes dolorida, mas compensadora, no fim de tudo. Para compor tenho necessidade de sair, é como se eu arejasse a minha cabeça e isso torna o processo mais fácil. Mesmo que eu termine em casa, o começo das ideias surge sempre nas ruas, muitas vezes num avião, numa multidão. Às vezes inspiro-me a ouvir uma outra música e crio algo completamente diferente. O brasileiro é muito engraçado, perspicaz; as personagens são muito fartas, as pessoas aqui mostram-se muito. São alegres, positivas. E isso encanta-me, também visualmente. Em Portugal, eu saio o tempo todo. Infelizmente, nunca tenho tempo que chegue... Normalmente, vou em trabalho. Mas, uma vez, fiz uma viagem de carro... Acho os cafés deslumbrantes, cheios de história e isso seduz-me imenso. Agora, por exemplo, estou em casa, aqui no Rio de Janeiro, vendo o Cristo Redentor e a ouvir Celeste Rodrigues. Descobri-a há pouco tempo e acho um fado maravilhoso. Celeste Rodrigues é de uma delicadeza... Ela canta realmente um fado celestial.

Palco ou estúdio: qual é o seu "lugar" favorito?

Para mim, palco é muito mais divertido apesar de haver sempre as dificuldades da viagem. Agora, por exemplo, eu estou congestionada: saí de Rondônia com 40 graus e vim para o Rio, onde estão 18. Isto desgasta muito o cantor. Por outro lado, a culinária de Rondônia foi tão maravilhosa, na beira do rio Madeira... E gosto de pensar que essa experiência de poder viajar seria muito difícil se eu trabalhasse noutra coisa. A parte boa compensa quase tudo, menos a saúde, que precisa de uns dias para se restabelecer. O estúdio desgasta-me muito. Sinto-me presa. Sou alguém completamente de rua, que gosta de escrever na rua, em cafés, gosto de observar as pessoas... O estúdio aprisiona-me muito.

O que a levou a dedicar um disco inteiro a Tom Jobim? Sente alguma afinidade especial com o mestre?

Eu sou tão apaixonada por Tom Jobim que, quando ele morreu, tive uma pequena depressão. Eu chorava muito e, passados uns três dias, sonhei com ele. Ele fumava um charuto dos seus e disse-me assim: "Minha preta, não fica triste, eu estou bem." Só aí eu parei de me preocupar e acreditei que ele estava bem. Logo no princípio da minha carreira, quando eu cantei com Baden Powell, o Tom tinha falecido há poucos meses. E o Baden disse-me que, se o Tom estivesse vivo, ter-se--ia apaixonado pela minha voz. Isso foi uma confirmação de uma conexão musical muito forte para mim. Quando veio a ideia de cantar Tom Jobim, aí deu-se realmente uma afirmação, uma confirmação de tudo isso: da minha paixão pelo trabalho dele, pela pessoa dele, a luta contra a degradação da natureza, a ecologia, o amor aos passarinhos, às espécies de árvores...

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