Numa entrevista recente à TSF, António Costa Silva foi certeiro na definição do povo português: "Absolutamente extraordinário nas crises e medíocre no regresso à normalidade." É o retrato perfeito da forma como está a decorrer este desconfinamento em plena pandemia - com milhares de pessoas na rua, de máscara no pescoço a amontoar-se nos cafés, como se nada se estivesse a passar -, mas é também a melhor metáfora para a forma como nas últimas décadas o país foi respondendo às crises que foram aparecendo..Igualmente certeiro, o Presidente da República pôs o dedo na ferida neste 10 de Junho: "Percebemos mesmo o que se passou e o que se passa ou preferimos voltar ao passado?" Que é como quem diz, queremos aprender alguma coisa com esta crise ou queremos só voltar à nossa vidinha e esperar que o acaso trate do resto? A carapuça serve a muitos, mas encaixa sobretudo no poder político, que tem a obrigação de nos tirar desta letargia económica e social em que vivemos há décadas. Percebemos mesmo, perguntava Marcelo, "aquilo que falhou na saúde, na solidariedade social, no público, no privado, e que temos nos meses e anos próximos uma oportunidade única para mudar?". "Ou escolhemos remendar, retocar, regressar ao habitual, ao já visto?" Ao "desenrasca aí", acrescentaria eu..Relembrei as palavras do Presidente enquanto lia com atenção o Programa de Estabilização Económica e Social, apresentado pelo Governo no final da semana passada. Não que o programa tenha alguma medida particularmente polémica - tanto que quase ninguém o criticou -, mas por aquilo que revela do atraso do país em tantas matérias. A começar no Serviço Nacional de Saúde, em que agora - eureka! - já todos reconhecem que é preciso valorizar os seus profissionais e criar condições de século XXI para os seus utentes. A escola pública, à qual agora se promete a universalização da escola digital. A habitação, um direito a que só as carteiras mais recheadas tinham acesso (sobretudo nas grandes metrópoles), que agora se reconhece que talvez haja alojamento local a mais e casas com rendas acessíveis a menos. Ou a eterna desburocratização do Estado, nas suas múltiplas dimensões, que enche há décadas a boca de sucessivos governantes, mas que andou sempre a passo de caracol. É ler o documento feito em cima da emergência de uma crise sanitária, económica e social e chegar à conclusão de que, em muitas matérias, estamos exatamente no mesmo ponto onde estávamos há mais de uma década..Bem sei que este é um Programa de Estabilização, que depois virá o programa de recuperação e quem sabe se, a seguir, não virá também um programa estratégico para a economia portuguesa. O que não faltou nos últimos anos foram "programas", "planos", "estratégias", "reformas", "livros verdes" e "livros brancos" cheios de boas intenções e de frases feitas. Mas faltaram as reformas coerentes, transversais, capazes de apontar um caminho de médio e longo prazo para a economia portuguesa. Que respondam às perguntas. Que país queremos ser? O que queremos produzir e como pensamos distinguir-nos dos demais? Que condições temos de dar às nossas empresas para que criem riqueza? Qual é o papel regulador que o Estado tem de desempenhar para garantir que essa riqueza é bem distribuída? Quando é que estamos a pensar deixar de ser um país de salários miseráveis?.Regressemos ao discurso do Presidente da República: "Não podemos admitir que algo de grave ou muito grave ocorreu e esperar que as soluções de ontem sejam as soluções de amanhã." Por estafada que esteja a frase, esta crise representa uma oportunidade - mais uma - e os milhões que vêm a caminho de Bruxelas podem ter um de dois destinos: construir uma economia capaz de pagar a dívida gigantesca com que vamos ficar ou desenrascar mais um plano de eloquentes teorias, que permita sobreviver politicamente durante mais algum tempo. E quem vier a seguir que apague a luz. Em democracia nunca há últimas oportunidades, mas talvez fosse sensato não abusar da sorte. Até porque ela não é eterna..Jornalista