O país com menos abortos da Europa, está a ver, Marcelo?
A campanha pela despenalização do aborto, no referendo de 2007, foi uma das minhas primeiras experiências de participação política "a sério". Na altura, os Jovens Pelo Sim eram uma das plataformas determinadas em pulverizar qualquer fronteira político-partidária para procurar alargar o campo do Sim.
Como muitas de nós, andei lado a lado com algumas pessoas com quem, provavelmente, nunca voltarei a partilhar qualquer projeto político ou social. Foi essa a nossa força, a criação de um amplo movimento para acabar com os julgamentos de mulheres e o aborto clandestino.
O resultado está à vista. A despenalização do aborto foi uma extraordinária vitória para a autodeterminação das mulheres e torna-se cada vez mais difícil explicar às novas gerações os argumentos de quem se opunha ao direito das mulheres para decidir sobre a sua vida.
O campo que, há 12 anos, tentou travar o progresso estreita-se cada vez mais. Claro que sobreviveram alguns fanáticos inconformados, mas esses nunca têm razões, apenas sentenças. Outros houve que, na linha do "é proibido mas pode-se fazer", tentaram esconder o seu conservadorismo atrás de pretensas preocupações sobre a necessidade de planeamento familiar. Num discurso ofensivo e misógino, afirmavam que o número de abortos dispararia com a despenalização. Que a única coisa que se impunha entre as mulheres e a utilização "leviana" do aborto era o medo da lei.
Portugal é hoje o país europeu com menos abortos por cada mil nascimentos. Tivemos, em 2015, o número mais baixo de abortos desde 2008, o primeiro ano completo depois da despenalização. Mais importante do que isso, deixamos de ter mulheres humilhadas em tribunal e, segundo Francisco George, "deixaram de chegar às urgências casos de mulheres com rutura de órgãos, como vagina e útero, decorrentes de manobras realizadas em abortos mal feitos".
A despenalização do aborto foi um sucesso. Esse sucesso não se deve a quem tentou travar a conquista das mulheres. Como sempre foi nosso argumento, nenhuma política de planeamento familiar poderia resistir à clandestinidade das mulheres que tinham de recorrer ao aborto sem condições de saúde, higiene ou segurança. A despenalização do aborto era uma questão de direito à autodeterminação das mulheres e uma urgência da sociedade.
12 anos depois, o sucesso da despenalização do aborto é uma conta a cobrar a Cavaco Silva, Durão Barroso, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Portas e todos os que tentaram atrapalhar o progresso do país. Foram muitas vezes a voz das pressões com que a igreja tentou limitar os direitos reconhecidos pelo Estado laico. É também uma boa resposta para os seus sucessores que, no anterior Governo, tentaram retirar o aborto do Serviço Nacional de Saúde e impor várias tutelas e obstáculos à livre escolha das mulheres.
Este balanço é importante. Ajuda-nos a lembrar o que éramos em 2007, um país que perseguia mulheres e lhes punha a vida em risco pela sua decisão de abortar. Mas também é útil para pensar as lutas do presente e como ainda estamos longe de acabar com outras perseguições de género nas suas formas mais violentas, os ataques, os femicídios e as violações.
Continuamos a precisar de leis corajosas e tão amplamente apoiadas como foi a despenalização do aborto. Na altura de defender a autodeterminação das mulheres há sempre quem tenha mais desculpas do que argumentos para ficar do lado errado da História. O melhor é mesmo continuar a avançar apesar deles, e logo chegará o tempo de lhes apresentar a fatura do progresso.
Deputada do Bloco de Esquerda