O outro homem do leme

Ratzinger era considerado moderado no início da vida eclesiástica e participa no Concílio Vaticano II como conselheiro de Joseph Frings. Torna-se responsável da Congregação para a Doutrina da Fé e passa a defender a via ortodoxa
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Rottweiler de Deus" é apenas um dos nomes pelos quais é referido o homem que, durante duas décadas, foi o responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé - a instituição que sucedeu ao Santo Ofício da Inquisição. Ao assumir este cargo, o cardeal Joseph Ratzinger adquire um poder que o coloca no segundo lugar da hierarquia da Igreja Católica e o transforma, de alguma forma, na eminência parda do homem que o escolheu para desempenhar a tarefa de guardião da pureza da fé: o papa João Paulo II.

O percurso eclesiástico deste terceiro filho de uma família tradicional e profundamente católica da Baviera - ao ponto de o baptizarem no mesmo dia em que nasceu, a 16 de Abril de 1927 - é feito de forma consistente, segura. Para Ratzinger, garantem críticos e defensores, o que conta são os resultados a longo prazo, não o imediatismo. Ordenado em 1951, Ratzinger faz o doutoramento em Teologia na Universidade de Munique e torna- -se professor de Teologia Dogmática na Universidade de Bona, experiência académica que repetirá noutras universidades. Mas um momento decisivo na vida do jovem padre Ratzinger ocorre na década de 60 quando é escolhido como conselheiro teológico do célebre cardeal Joseph Frings, então arcebispo de Colónia, no Concílio Vaticano II.

Frings era considerado um dos mais poderosos homens da Igreja, moderado - senão mesmo liberal -, com fortes ligações ao Terceiro Mundo. Um seu discurso abalou o Concílio e criou a esperança de que se vivia um momento de renovação da Igreja: ao referir-se ao Santo Ofício, o cardeal considerou que "os seus métodos e comportamento não estão conforme com a era moderna e são fonte de escândalo para o mundo". Segundo várias fontes, incluindo o bispo auxiliar de Viena, Helmut Kratzl, Ratzinger não terá sido alheio à crítica de Frings e terá sido também ele quem lançou a proposta da celebração da missa no idioma local em vez do latim. Ratzinger era, aliás, visto então como moderado.

O inteligente jovem da Baviera - que gosta de tocar piano e prefere Mozart - tornou-se num reconhecido intelectual, portador de um pensamento profundo mas conservador. A sua mudança, que Ratzinger diz "nunca existiu", é explicada pelos seus próximos como consequência dos tempos; a ela não serão alheios os sistemas totalitários que dominaram o mundo de então e as revoluções estudantis da década de 60, cujos "excessos" lhe desagradaram. Antes de ser escolhido por João Paulo II para prefeito da Doutrina da Fé, a 25 de Novembro de 1981, já Ratzinger - que domina seis idiomas e foi feito cardeal em 1977 pelo papa Paulo VI - era uma presença na Comissão Teológica Internacional do Vaticano; a escolha feita por Karol Wojtila não surpreende.

Durante os seus 24 anos como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger apresenta a sua face mais intransigente na defesa da ortodoxia da Igreja. A lista das suas decisões doutrinárias, com o aval do Papa, é longa. Algumas não colheram o consenso dos "dois pilares" da Igreja. Uma dessas situações terá ocorrido aquando da introdução do novo direito canónico onde, como revela o jornalista italiano Gianluigi Nuzzi, ao contrário do que desejava Ratzinger, é abolida a norma que previa a excomunhão automática para os mações. O princípio da comunhão automática datava do século XVIII, com o papa Clemente XII.

Um outro momento em que os dois "gigantes" terão estado em desacordo prendeu-se, revela o jornalista britânico Damian Thompson, com a investigação de casos de pedofilia. Segundo Thompson, que cita o cardeal Schoenborn e arcebispo de Viena, Ratzinger terá tentado persuadir João Paulo II a autorizar uma investigação completa a um cardeal que abusou de crianças e jovens frades. Mas, terá desabado Ratzinger a Schoenborn, "ganhou o outro lado" (os seus opositores). À luz deste desabafo fica por explicar a carta que Ratzinger enviou aos bispos na década de 90 a exigir o silêncio absoluto sobre situações idênticas para que a Igreja não saísse manchada. Ou mesmo o seu silêncio quando, em 1998, é feita uma tentativa para julgar o padre americano Lawrence Murphy, acusado de abusar sexualmente de crianças surdas. Curiosamente, quatro anos antes, Ratzinger não se esquecera de enviar uma carta aos bispos americanos lembrando que a "Sagrada Comunhão está interdita aos divorciados que voltaram a casar-se", uma situação que também se coloca a todos os católicos que apoiarem candidatos que defendam o aborto.

A excomunhão, o silêncio, são outras tantas armas que Ratzinger e o seu Tribunal utilizam com frequência. Leonardo Boff, por exemplo, é um dos visados pelas decisões do cardeal. Em 1985, é imposto o silêncio a este frade franciscano brasileiro e um dos expoentes da Teologia da Libertação pelas suas posições políticas de cariz marxista.

Ratzinger cumpre em absoluto o seu papel: não dá tréguas à heresia e revela-se um autêntico "leão do conservadorismo" do Vaticano. João Paulo II podia continuar a percorrer o mundo e a atrair multidões com o seu sorriso aberto porque, em Roma, um outro timoneiro, menos mediático, segurava o leme da barca. Discreto mas seguro na sua missão.

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