O Orçamento da junta

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1- Olhos e ouvidos no debate de ontem, com a cabeça num título de outros tempos: "A moeda única vai transformar Portugal numa gigantesca junta de freguesia da Europa." O homem exagerava. A sua visão era credível mas ninguém acreditava nele. Nunca foi um antieuropeísta e nem anunciava a catástrofe, apenas o encolhimento: se já éramos pequenos, a integração económica europeia tornava-nos simplesmente irrelevantes.

Havia um racional nesta integração. E um projeto visionário. O racional era simples: os países do Sul aceitavam disciplina fiscal e garantiam estabilidade monetária; as economias desenvolvidas assumiam o risco dos indisciplinados e ampliavam mercados. Se a conversa dominante era demasiado financeira, o propósito dificilmente poderia ser mais inspirador.

Depois de derrubar muros, depois de reunificar a Alemanha, a moeda única era mais um projeto da ousadia humana: líderes visionários conseguiam, de livre e espontânea vontade, em democracia e em paz, convencer os povos a abdicar de algo que antes só se cedia à força e se perdia em guerras - a soberania.

Por isso, a maioria acreditou, os dirigentes receberam o mandato, lançaram o euro, criaram tratados, construíram eurossistemas e uniões bancárias. Soberanias partilhadas? Bem, diante do processo orçamental de Portugal, neste ano da graça de 2016, os euroentusiastas de outrora, que somos todos nós, declaram-se os europarvos de agora.

O debate ontem iniciado no parlamento regional de Lisboa, onde se falou de "dois caminhos", onde se digladiaram esquerda e direita, resume-se a uma conversa oca sobre caminho algum. Não pode haver confronto entre opções divergentes sobre aquilo que não depende de nós.

Proponho um exercício: conseguem adivinhar o que aconteceria num debate sobre as finanças públicas na Assembleia Municipal de Alfândega da Fé? Berta Nunes, a brava e combativa autarca, enfrenta oposições com ideias diferentes e tem um orçamento para gerir. Qual a relevância daquela conversa? Entretêm-se, vincam clivagens e votam. A realidade daquela terra depende objetivamente de quem? Das "gentes da terra" ou de quem as financia, neste caso o Estado Português?

Portanto, a analogia é esta mesma: até Trás-os-Montes, pode unir--se a região inteira, não muda a sua política nem redefine o seu destino de forma autónoma e contra a vontade do governo português. Pois é a coisa mais clara deste processo negocial: Bruxelas não permite que Lisboa tenha ideias.

Os nossos deputados esbracejaram ontem na generalidade, picardia certa na especialidade. Continuam a chamar-lhe Orçamento do Estado de 2016. Só o ano carrega uma novidade: é um ano sem troika, é um ano de esquerda, é um ano de governo novo, um ano em que tudo se anuncia revertido e Centeno já provou o veneno. Baralhar e dar de novo, austeridade recauchutada, até Mortágua descobre que defende um Estado que orçamentalmente deixou de existir há muito.

2- Pobres, pequenos e endividados - é nesta fórmula que um Orçamento de uma região se define num espaço único e integrado. Seja essa definição feita numa conversa camarada entre Berta e Costa, seja feita em inglês macarrónico entre Costa e Juncker.

A língua faz evidentemente aqui uma enorme diferença, mas há algo mais forte que dita a relação de forças entre quem tem e quem não tem dinheiro. E como a Europa só está reduzida a dinheiro, não há soberania partilhada nem por partilhar. Dito de outra forma, não há projeto que resista.

É aqui que evoco João Ferreira do Amaral. E aqui confesso que, enquanto ouvia os nossos deputados, durante as cinco estéreis horas de debate inconsequente, ia silenciosamente pedindo-lhe desculpas. Vinte e tal anos depois das honras de primeira página que lhe foram concedidas e da citação entre aspas: "A moeda única vai transformar Portugal numa gigantesca junta de freguesia da Europa." Não pelo destaque em si, mas desculpa pelas suas motivações - como é que um homem tão sério e inteligente poderia afirmar algo tão absurdo!

Estava certo e só exagerou na expressão "gigantesca". De facto, Portugal é hoje a Alfândega da Fé da Europa: depende de recursos alheios, perdeu dinâmica, perdeu gente, perdeu até o Orçamento, porque é Bruxelas que o aprova e, desta vez, nem se coibiu de dizer o que permite e o que não quer. Os deputados da República limitam-se às bravatas verbais. Tão inúteis e folclóricas quanto as sessões que uma minúscula assembleia municipal pode convocar para decidir sobre os destinos mais remotos do interior do país.

O debate até pode ser interessante. O tal confronto entre esquerda e direita. Ver o Bloco atacar os que fazem oposição do bota-abaixo. O PCP votar favoravelmente pela primeira vez em décadas. É histórico? Não conta para a história. Pacheco Pereira, que muito respeito, vê neste momento a oportunidade de um "regresso ao centro da vida política portuguesa", após estes anos todos em que "a alavanca esteve inclinada para a direita".

Ele torce tanto por este governo socialista português como em tempos eu próprio desejei que a experiência grega, com o Syriza entretanto capitulado, viabilizasse uma alternativa à via alemã, confrontasse a Europa com outras opções, resgatasse a política em Bruxelas e tirasse a Europa do seu estado zombie.

Um ano depois, Pacheco Pereira viu na tortura orçamental portuguesa, no veneno que deram a Centeno, a prova de que Bruxelas quer matar esta bizarria (que aqui chamam geringonça) à nascença. Walking Dead. Acho que já não é preciso. Costa foi mordido no pescoço. Vai virar um Tsipras, que também já o tinha sido. Em breve estarão os dois a arrastar os pés, numa noite escura, iguais entre outros. Fónix, dizem os espectadores, que em inglês se traduz em brexit!

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