O ocaso dos partidos que acabaram com o bipartidarismo em Espanha

Cinco anos após a revolução, o Podemos está no governo, em contradição com aquilo que defende, e tem vindo a perder eleitorado. Já o Ciudadanos está à beira de implodir, enfrentando uma OPA do PP.
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As eleições de dezembro de 2015 marcaram o fim do bipartidarismo em Espanha, com a irrupção do Podemos (à esquerda) e do Ciudadanos (à direita). Mas, cinco anos depois, não houve o prometido sorpasso (nem um nem outro conseguiram ultrapassar PSOE ou Partido Popular) e ambos estão num momento de viragem. No último barómetro do Centro de Investigações Sociológicas, nenhum chega a 10% das intenções de voto. Enquanto isso, a extrema-direita do Vox consolida-se nos 15%.

"Estamos a assistir a um declínio do Podemos, que está em contradição completa, porque é visceralmente contrário ao poder e ao Estado espanhol e está atualmente no governo", disse ao DN o professor de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, Filipe Vasconcelos Romão. "Mas como a componente ideológica é muito forte, não creio que arrisque o mesmo destino que o Ciudadanos, que depois de ter tentado ser um partido charneira se encostou ao centro-direita e não deverá chegar ao fim de 2021", referiu.

"Em Espanha, até às eleições de 2011, tínhamos um modelo bipartidário imperfeito, em que os votos se concentravam em dois grandes partidos, o PSOE à esquerda, o PP à direita", explicou o professor universitário, lembrando a capacidade que o sistema tinha para formar maiorias absolutas ou maiorias muito musculadas. Por causa da história, com guerra civil, regime de Franco e transição democrática, vivem-se momentos de "crispação política" nos anos 1990, deixando de existir um eleitorado flutuante de centro, "se alguma vez existiu", referiu Vasconcelos Romão.

"O que passa a existir, de forma clara, é um eleitorado de centro-direita/direita e de centro-esquerda/esquerda, que raramente passa do PSOE para o PP ou vice-versa", explicou, falando de dois blocos praticamente imóveis. "O que normalmente ocorria era que, quando havia uma desmobilização da esquerda, o PP conseguia vencer as eleições. Quando havia uma maior mobilização da esquerda, por regra, o PSOE ganhava", resumiu.

Até que chega o ano de 2015. "O que ocorre, fruto do cansaço com a austeridade e, em grande medida, também a corrupção do PP, é que o eleitorado à esquerda e à direita começa a procurar alternativas" em cada um dos respetivos campos. Daí a irrupção, de forma explosiva, tanto do Podemos como do Ciudadanos, no sistema, que teve dificuldades em se adaptar. "Porque é que houve quatro eleições em quatro anos? Porque não havia uma política e uma prática de coligações, de acordos parlamentares ou de entendimentos. Os partidos estavam habituados a governar sozinhos", lembrou Vasconcelos Romão.

No caso do Podemos, que nasceu em 2014 no rescaldo do movimento dos indignados de 2011, a atual crise é de eleitores. Desde que se juntou à Esquerda Unida em 2016, formando a aliança Unidas Podemos e conquistando 69 deputados, que a formação de Pablo Iglesias tem vindo a perder terreno a cada nova eleição (na prática ambos perderam com essa junção, já que nas eleições anteriores tinham tido juntos mais um milhão de votos). Apesar de ter tido o pior resultado de sempre em novembro de 2019, o partido conseguiu o feito inédito de entrar num governo de coligação com o PSOE de Pedro Sánchez.

Iglesias (dos fundadores é o único que continua no partido) tornou-se no segundo vice-primeiro-ministro, mas agora decidiu demitir-se para concorrer às eleições autonómicas em Madrid. "Por um lado é uma tentativa de se libertar das amarras do governo, porque estava numa posição completamente desconfortável devido às suas posições que dificultavam o discurso político. E por outro, o objetivo é impedir que o Podemos fique de fora da Assembleia de Madrid, porque é preciso 5% dos votos para entrar e arriscava-se a não os ter", explicou Vasconcelos Romão.

À esquerda na capital, além do PSOE, a Unidas Podemos enfrenta o Más Madrid de Íñigo Errejón, que deixou o Podemos em desacordo com o líder. Quando anunciou a sua intenção de ser candidato, Iglesias estendeu-lhes a mão, defendendo uma candidatura unida. Mas este rejeitou completamente a oferta, mantendo como previsto a candidatura de Mónica Garcia.

Entretanto, o seu cargo como vice-primeiro-ministro será assumido pela ministra do Trabalho, Yolanda Díaz, do Partido Comunista Espanhol (um dos que estão dentro da Esquerda Unida). Iglesias também defendeu que deverá ser ela a próxima candidata da Unidas Podemos às legislativas. Vista com bons olhos pelo eleitorado socialista, resta saber o impacto que terá nas sondagens - o barómetro ainda não refletia esta mudança.

A situação do Ciudadanos, partido que nasceu na Catalunha em 2006 e se lançou no âmbito nacional só em 2015, é ainda mais grave. Entre as eleições de abril e as de novembro de 2019, passou do melhor resultado de sempre, um terceiro lugar, para o pior, um quinto, perdendo 30 deputados. O líder Albert Rivera, demitiu-se, abrindo a porta a Inés Arrimadas, que tinha conseguido vencer as eleições autonómicas na Catalunha de dezembro de 2018 (sem maioria para afastar os independentistas do governo). Contudo, Arrimadas herdou um partido em crise de identidade.

"O Ciudadanos tentou assumir-se como um partido charneira, chegou a fazer um acordo com Sánchez após as eleições de 2015, mas depois foi-se progressivamente consolidando como partido de centro-direita", lembrou o especialista em política internacional. "O Ciudadanos pagou o preço de se aproximar excessivamente do PP e quando Arrimadas tentou distanciar-se, já era tarde", acrescentou.

O detonador da atual crise foi a decisão do Ciudadanos de romper o acordo com o PP em Múrcia no meio de escândalos de corrupção e apresentar uma moção de censura ao líder regional, contando para isso com o apoio do PSOE. O problema foi que o partido de Pablo Casado conseguiu convencer, a troco de cargos, vários deputados do Ciudadanos de Múrcia a virarem as costa ao partido e a moção de censura acabou por falhar. E, para cúmulo, o PP rompeu o acordo com o Ciudadanos na Comunidade de Madrid, convocando eleições antecipadas para 4 de maio.

O que se seguiu tem sido uma sangria nas elites do partido, incluindo senadores e deputados - de tal forma que já não têm quorum para ter um grupo próprio no Senado. "Os eleitores já estão a caminho do PP, que tem vindo a crescer, e agora são os líderes e as elites do Ciudadanos que estão a passar. O PP está a ir buscá-los, prometendo lugares nas listas, cargos de nomeação nas diferentes administrações onde tem o poder... O PP lançou uma OPA sobre o Ciudadanos", disse Vasconcelos Romão.

Diante do recuo de Podemos e Ciudadanos, outro ator político consolidou-se mais à direita que o PP, de onde eram os seus membros fundadores. O Vox, de Santiago Abascal, nasceu em 2013 e também se estreou nas eleições de 2015 - mas teve apenas 58 mil votos (0,23%). Em 2016, fez ainda pior. Mas, quatro anos depois, com um processo independentista na Catalunha pelo meio, o discurso anti-imigração e machista entraria em força no Congresso, com mais de 2,6 milhões de votos e 24 deputados. Seis meses depois, quando os espanhóis voltaram às urnas porque não tinha sido possível formar governo, tinha subido um milhão de votos e tornava-se na terceira força política, com 52 deputados.

"O Vox começa também a corroer o PP, aproveitando o tal descontentamento e a corrupção e uma certa moderação que Rajoy imprimia à direita e explode", referiu Vasconcelos Romão. O primeiro sucesso foi nas eleições andaluzas de dezembro de 2018, onde se estreou num parlamento regional e acabou por, com o seu apoio, dar luz verde à coligação entre PP e Ciudadanos e afastar o PSOE, que governava há 36 anos.

"O Vox é um dilema para o PP. Ou tem um discurso moderado e depois utiliza o Vox em acordos parlamentares ou faz um discurso semelhante. E não há perspetiva de moderação da direita", acrescentou, lembrando que em Espanha, por causa da polarização enorme que existe, um acordo entre PP e Vox "não é algo tão censurável como seria noutros países".

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