"O objeto da carta era o espaço do amor deles"
Numa cena de Cartas da Guerra, cruzam-se planos do homem que está em África, e da mulher, em Lisboa, numa intimidade virtual que porventura lembra o início de Hiroshima, Meu Amor [1959] - o contacto da pele em cenário de guerra, que aqui se sente pela voz que lê a carta. De alguma forma, é o amor e o desejo contidos nas cartas que dão acesso à memória coletiva da guerra colonial?
Sim, há um lado coral que reivindica o drama de um país. Pegando nessa cena concreta, aquilo que lhe precede é um concerto, e depois temos os rostos dos homens, que provavelmente estão a sonhar com as namoradas ou namorados, a vizinha do lado... e na sequência disso isolamos o protagonista e a mulher. Há uma ressonância, um contágio. O sonho dele impulsiona o sonho dos outros. Depois, sendo um filme que trata uma grande história de amor, a ideia era que houvesse uma espécie de contágio cósmico, que superasse o espaço e o tempo - porque quando se escrevia a alguém, naquela altura, não era por WhatsApp, era um processo demorado... Então, o objeto da carta, ao contrair esse tempo, era o espaço do amor deles.
Circula a história de que foi ouvindo a sua mulher, Margarida [Vila Nova], a ler uma das cartas para a barriga, quando estava grávida, que surgiu a ideia do filme. Mas há ainda uma coerência temática - o amor e a memória política - com as suas longas-metragens anteriores. Está tudo ligado?
Eu sempre quis tratar este tema, e realmente foi a voz da Margarida que despoletou tudo. Mesmo no filme, a maioria das cartas são lidas em voz-off por ela, havendo como que uma personagem intermédia... Não nos podemos esquecer do trauma destas mulheres, que recebiam homens muito diferentes daquela pessoa por quem se tinham apaixonado. E nas cartas do António Lobo Antunes estava aquilo que me interessava - o lado histórico, o amor e o crescimento de um homem, que é alguém que vem da burguesia intelectual lisboeta, e que, de outra forma, nunca na vida teria contacto com esses homens... A editora alemã diz mesmo que se ele não tivesse ido à guerra nunca teria sido o escritor que é. Não sei, mas de facto é o contacto com aquela realidade, com África, com as paisagens, com as pessoas que o vai mudando. Na página 343, quando diz "não posso continuar a viver como vivi até agora", dá-se essa mudança política, e o crescimento dele como homem também se reflete no crescimento como escritor. É sobretudo isto que me agrada na personagem, e o seu olhar especial sobre as coisas à sua volta.
A opção pelo preto e branco, para lá de noções estéticas, cria uma fidelidade à maioria das imagens que conhecemos da guerra...
Não me interessa nada a estetização. E sim, há uma iconografia da guerra, desta e outras, que é a preto e branco, mesmo que já houvesse cor. Precisamente, todas as referências fotográficas que o João Ribeiro [diretor de fotografia] me apresentou eram a preto e branco... Mas isto veio ainda de outra questão. Eu estava com um problema que tinha a ver com o facto de ser uma matéria biográfica, e de as pessoas envolvidas estarem vivas - exceto a Maria José, infelizmente. Esta coisa de entrar na intimidade familiar, e ainda o acréscimo das contingências de produção... fiquei com medo de perder o filme. Depois, entre os olhos azuis do Lobo Antunes e o retrato de uma guerra, de uma época, com um orçamento miserável, precisei de refrescar os meus próprios olhos.
O que é que isso quer dizer?
Eu às vezes sentia-me tão cansado que, mesmo estando no local, parecia que o filme era impossível de se fazer, que o dia seguinte nunca ia acontecer... então no segundo dia tirei a cor do computador - ainda para mais sou daltónico - e vi o material a preto e branco. Nessa altura pensei, "não sei se é por estar cansado, mas estou a gostar imenso de ver isto assim". No fundo, questão era só esta: eu precisava de um filtro.
Para aceder a um quadro íntimo?
Exato. O António Lobo Antunes sempre disse que nunca tinha lido o livro. Sei, através de um amigo em comum, que recentemente pegou e folheou uma versão em espanhol... Isto é o preto e branco do filme, uma distância que às vezes é preciso criar.
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Era essencial filmar em África?
Há pessoas que fazem a vida num quarto. Eu não sou assim, preciso de viver as coisas. O que trouxemos de África não foi só a paisagem, foi também uma memória afetiva que, através do atores que lá estiveram, passou para os que ficaram cá.
Foi uma rodagem complicada...
Foi uma loucura minha, e a produção acompanhou-me nisso. Vou dar um exemplo: precisava de construir um aquartelamento ao lado de uma aldeia, e precisava também de um rio e de uma ponte partida... De repente, chego a um sítio onde tenho o rio, a ponte partida e só faltava montar o aquartelamento, mas para isso era preciso passar por cima da ponte - e estamos a falar de 40 toneladas... O que é que fizemos? Reconstruímos a ponte. Toda a equipa.
Tal como se vê no filme.
Sim, esse foi o momento do teste. Sem a ponte, o filme não podia ser feito ali. Eram estes pequenos milagres que garantiam o dia seguinte da rodagem.