O novo duelo institucional entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa

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Ainda se lembra do "duelo" entre o Primeiro-Ministro e o Presidente da República a que assistimos no caso do Ministro João Galamba? Foi quando o Primeiro-Ministro desafiou (sem exagero) o Presidente da República ao decidir manter o Ministro João Galamba no Governo. Na altura apelou várias vezes à sua consciência, que esta não lhe permitiria uma decisão diferente.

Marcelo Rebelo de Sousa, forçado a dar uma resposta, deu-a passadas 46 horas (depois de comer um gelado em Belém) e assumiu uma posição muito formal. Falou, antes de mais, como Presidente da República, com todas as formalidades que acompanham os seus comunicados.

Agora, em novembro, estamos perante uma nova crise, com as mesmas personagens principais e, apesar de serem dois momentos diferentes, faz todo o sentido comparar os comunicados de ambos feitos na altura e agora e procurar as semelhanças e as diferenças como as crianças fazem no jogo de "encontrar as diferenças". Porque estas existem e, principalmente, na forma como as comunicações foram feitas.

Então, vamos por partes.

Se o discurso de António Costa em maio foi feito sem púlpito ou qualquer outra barreira -- para destacar a sua transparência, mostrar que não tinha nada a esconder e que tinha a consciência limpa (algo que repetiu várias vezes ao longo do seu discurso) -- esta última comunicação sobre a demissão já foi feita com ajuda de um púlpito. Também apelou à sua consciência ("Não me pesa na consciência a prática de qualquer ato ilícito", disse), mas, a presença do púlpito com o símbolo da República Portuguesa mostrou que, desta vez, o discurso foi feito na sua estrita qualidade de Primeiro-Ministro (e faz sentido porque, afinal, era o Primeiro-Ministro e não o António Costa quem estava a pedir a demissão) e não a título pessoal (algo que se "ouviu" várias vezes durante o discurso no caso do João Galamba).

Na gesticulação, revelou o mesmo padrão que no discurso anterior: gesticulou pouco e preferiu segurar nos papéis (que não usou no discurso anterior) ou, às vezes, colocar as mãos no púlpito. Também já vimos esse padrão comportamental noutros comunicados em que o ex-Primeiro-Ministro não se sentia confortável com o tema -- basta lembrar a sua prestação na conferência de imprensa sobre a ajuda familiar de 125 euros. Ao mesmo tempo, apareceram gestos repetitivos e sem significado (como balançar, mexer nos papeis) -- são gestos que não fazem parte do padrão comportamental de António Costa e que indicam, sem dúvida, uma carga adicional emocional e/ou cognitiva no momento de comunicação (algo que qualquer um de nós sentiria se estivéssemos na mesma situação). Algumas palavras mal ditas ("procuraria" em vez de "procuradoria" e "consciência tranquilia" em vez de "tranquila") confirmaram o desconforto.

E, por fim, como já vimos no passado, o discurso de 7 de novembro foi dividido em duas partes: a parte do comunicado em si e a parte de perguntas e respostas e que ficam bem marcadas por uma linguagem não verbal diferente. Se na primeira parte António Costa não gesticula, segura os papéis ou coloca as mãos no púlpito, já na conversa com os jornalistas voltámos a ver António Costa muito mais à vontade - aqui já aparecem as mãos a acompanhar a fala e um maior envolvimento do corpo. Não é por ele saber as respostas ou por ficar confortável com qualquer coisa que venha dos jornalistas, mas por ter treino e experiência suficientes que lhe permitem dar a volta a qualquer pergunta, caso seja necessário. E, como o próprio António Costa fez notar, ele não quis deixar nenhuma pergunta por responder.

Outro pormenor que não posso deixar de fora nesta análise é o facto de ter apontamentos escritos à mão (o que deve decorrer da rapidez vertiginosa com que tudo aconteceu naquela manhã) e em folhas pequenas, conforme as boas regras de media training indicam. Por vezes leu, mas na maioria do tempo falou sem olhar para os apontamentos, o que tornou o discurso mais natural e genuíno apesar da linguagem não verbal atípica.

"No julgamento o que mais me importa é a minha consciência. Estou totalmente tranquilo", disse António Costa em resposta a uma pergunta de um jornalista e, admito, acredito no que diz por apenas um gesto -- toca no peito com a mão direita e faz este gesto uns momentos antes de proferir as palavras. Quem estuda linguagem não verbal sabe que um gesto genuinamente verdadeiro se antecipa sempre às palavras e foi o que aconteceu. Para além disto, ao referir pelo menos duas vezes que estava "totalmente disponível", acompanha essa afirmação com as mãos a gesticular e com as palmas das mãos viradas para cima -- mais um sinal de provável sinceridade e abertura. Os críticos podem até dizer que foram gestos pensados e ensaiados. Duvido. Primeiro, porque houve pouco tempo para ensaiar estes pormenores e, segundo, porque isto aconteceu já na sessão de perguntas e respostas, onde a possibilidade de preparação é sempre menor.

Ainda falou da família e a quebra na voz denunciou as emoções. Estava a ser sincero, sim.

A resposta do Presidente surgiu pouco mais de 48 horas depois e, tal como da última vez, tinha todos os atributos formais -- as bandeiras, o símbolo da República Portuguesa no púlpito e na cortina atrás -- tudo reforçou o tom oficial da resposta. Vimos o mesmo cenário da última vez, por isso, nada de novo.

Ao contrário de António Costa, esteve à vontade. Vimos o Presidente no seu padrão comportamental normal, caracterizado pelo uso de gestos, muita expressividade na face, entoação variável e bom contacto visual com as câmaras. Se lhe custou essa decisão? Não me pareceu. Ou, pelo menos, o corpo não denunciou isso.

Se o António Costa tentou improvisar de vez em quando ao longo do seu comunicado, o Presidente tinha o discurso escrito e esse foi cuidadosamente lido. As frases longas e as construções de linguagem escrita (às vezes difíceis de verbalizar) denunciam um discurso bem preparado, sem deixar margem para improviso.

Parece que, desta vez, o duelo foi mais curto e com um vencedor óbvio. Se em maio as opiniões sobre quem ganhou se dividiram, desta vez a última palavra ficou com o Presidente. Com apenas um "tiro" arrumou as dúvidas, nossas e as de António Costa, e colocou uma nova meta para todos os portugueses - 10 de março de 2024. Vamos ficar atentos para o que vier, porque é o povo quem deveria ganhar da próxima vez.

Especialista em comunicação não verbal

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