O novo 'Hamlet' de Ninagawa em Londres

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O actor, realizador e encenador japonês Yukio Ninagawa (1935) estreou agora em Londres a sua segunda leitura de Hamlet. Desde a tournée europeia de Medeia (1983), Ninagawa vem desenvolvendo, através do teatro de Shakespeare, um diálogo intercultural entre o Japão e o Reino Unido. Em Londres e no Festival de Edimburgo já apresentou Macbeth, A Tempestade, Sonho de uma Noite de Verão, Hamlet, Rei Lear e Péricles, dirigindo actores japoneses (Sainokuni Shakespeare Company), britânicos (Royal Shakespeare Company e Royal National Theatre) ou elencos mistos. Agraciado, em 2002, com a Ordem do Império Britânico (Comandante), as suas encenações mereceram o aplauso unânime da crítica, que nelas viu uma síntese perfeita entre a estilização da representação ritualista do Oriente e uma dramaturgia conservadora de Shakespeare (ganhou, em 1990, o Prémio da Crítica do Festival de Edimburgo).

Surpreendeu, pois, a reacção contida, quase anódina, ao seu novo Hamlet (com a National Royal Plymouth). Do elogio vago à censura explícita (Charles Spenser, no Daily Telegraph, reverberou um «Shakespeare lost in translation», reduzido à «estéril quintessência do nada»), as argumentações coincidiram nas causas do revés: o encenador não saberia inglês para dirigir um elenco exclusivamente britânico, confiara o protagonista a um actor mediano e envelhecido (Michael Maloney) e a sua frieza conceptual seria improcedente.

O que se vê no moderno auditório do Barbican Centre pode levar a formar um juízo divergente. O espaço cénico (Tsukasa Nakagoshi) conciliava inteligentemente o despojamento do palco isabelino poliédrico com três discretas traduções plásticas do horizonte da peça: o negro sufocante que recobre todos os objectos (os enganos opacos duma noite fantasmática); os seis fios de arame farpado, esticados entre a teia e o chão (inscrição subtil da transformação do Castelo de Elsinore num aprisionante labirinto de culpas); as tímidas lâmpadas oscilantes (a verdade periclitante que só na morte é clarificada).

Significativa também a prevalência do texto - que se ouve na íntegra (a força expressiva resulta do modo de dizer «aquela» intriga) - sobre a imposição dum ponto de vista: gere-se o ritmo pelas abruptas entradas e saídas por portas invisíveis, recorre-se apenas a uma alternativa de iluminação (que sendo estática sujeita o movimento dos actores a um perturbante jogo de claro / escuro), os figurinos «moralizam» cromaticamente as personagens (a faustosa púrpura inicial de Claudius e Gertrude ganha apontamentos sombrios, permanecendo negro o traje de Hamlet e alvo o de Ophelia). Reconhecem-se algumas fragilidades apontadas pela crítica britânica: desempenhos menores (a Ophelia de Laura Rees, por exemplo), direcção imprecisa dos intérpretes mais jovens, desadequação do figurino do Fantasma (um shogun deslocado), uso rebarbativo da boca de cena para os famosos monólogos de Hamlet. Mas a austera beleza da proposta, a magnífica e rigorosa inteligência do texto (à segurança de Maloney e de Frances Tomelty, em Gertrud, impôs-se a genialidade do Claudius de Peter Egan) e uma poética noção de «tempo lento», que clarifica os infindáveis jogos de espelhos da peça, tornam urgente que algum dos nossos programadores institucionais apresente a arte de Yukio Ninagawa ao público português.

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