O nosso atentado

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Um dia também teremos o nosso atentado. Não sei se será uma bomba ou uma fuzilaria em espaço público; se contra o Centro Comercial da Mouraria, e a mafoma que lá comercia, ou se levará uma horda de turistas nos Jerónimos, o monumento que celebra a expansão dos infiéis (nós). Logo se verá. Não é para já, espero. Como é norma no país, a coisa será importada tardia e depois de longamente testada lá fora. Quando acontecer, já a mortandade e o terror deixaram de ser notícia, e o mundo, dessensibilizado, terá adquirido outros hábitos para poder viver com o problema que, como doença, se fez crónico.

Nessa altura, ter-se-á generalizado o estado de policiamento constante nas cidades de que gostamos. O capacete com viseira, a armadura e cnémides de Kevlar, a metralhadora em punho e as granadas no cinto, será equipamento standard da polícia de rua. Tal como será standard o revistar de cidadãos suspeitos e as suas casas - é ver o Brazil do Terry Gilliam ou ler a velha ficção científica Heinlein, Ballard... - e todos serão suspeitos aos olhos de quem tem a missão de suspeitar: a polícia e os vizinhos.

Haverá, entretanto, bairros seguros e à prova de bomba, os melhores bairros, onde vivem os "melhores" cidadãos. Nas ruas que a eles dão acesso, os prédios estarão devolutos e os carros passarão a conta-gotas para controle de quem entra e sai do bairro. Um pouco como se passa hoje nos condomínios privados, mas a uma escala maior e com o tipo de rastreio que se faz nos aeroportos e à entrada das embaixadas. Haverá mesmo cidades inteiras anunciadas no suplemento imobiliário do Financial Times como "bomb free cities". Obviamente serão bairros e cidades caras, onde os mais afluentes - cristãos, judeus e ateus - viverão na paz possível, uma paz patrulhada de dia e de noite, nas ruas, nos esgotos e nas catacumbas, por polícia de Kevlar. Serão também estes os mais desejados alvos do terror, e os seus esforços e engenho é a eles que será dirigido.

Recomeçará na Europa e nos Estados Unidos a prática dos guetos e dos campos de concentração geridos por forças de segurança onde viverá quase toda a população maometana e idólatra. Soluções que serão vistas e apoiadas pela grande maioria dos cidadãos, como soluções avisadas e eficazes. Serão medidas democráticas e legitimadas pelo eleitor.

A compreensão de que o terror é um fenómeno mediático levará a que os atentados sejam suprimidos das notícias ou não passem de nota de rodapé - com o mesmo peso que tem hoje uma colisão frontal na A23. Tal acontecerá porque também neste caso as democracias chegarão à conclusão de que é a notícia e a divulgação do terror que o incentiva e alimenta. Que o atentado é uma moderna e mediática actividade de criação de assunto: aparecer, ter impacto, ser falado, é o seu principal objectivo. Por esta razão, as democracias decidirão censurar a acção dos terroristas censurando a sua notícia - com alguns protestos, poucos, de jornalistas que serão vistos como simpatizantes da causa do terror. Frases como "A França está em choque" ou "A América está em choque" deixarão de ser ouvidas porque deixarão de fazer sentido. O terror deixará de chocar, tanto por cansaço como por omissão noticiosa. Tudo será feito a bem da segurança e com o apoio dos cidadãos. Os mesmos que elegerão os inevitáveis novos Trumps e que apoiarão a guetificação das cidades.

Em zonas mais temperadas e subtropicais, depois de limpas as malárias e outras pragas biológicas e sociais, aparecerão os primeiros países condomínio. Países de amenidades para os muito ricos que os habitam, pagam e gerem, servidos por uma comunidade de cidadãos obedientes, trabalhadores e bem pagos, cuja permanência no país depende do comportamento e da performance; uma espécie de KPI socioprofissionais. Serão países privados, socialmente desenhados para a vida tranquila, e geridos segundo preceitos empresariais e modelos de governance inspirado nas grandes corporações: uma democracia de accionistas. Terão à sua frente, para efeitos de representação internacional e gestão doméstica, ex-políticos e governantes importados de outras partes do globo, gente que fez a sua carreira, e saiu-se bem, em países clássicos e em instituições mundiais. O objectivo destes presidentes/CEO e primeiros-ministros/COO será, obviamente, o de criar valor para o acionista: os concidadãos que pagam o país.

Será nessa altura que teremos o nosso atentado. Algures no território, um português pensará que "Só em Portugal é que não há atentados". E, tendo como ponto de partida esta premissa, tratará de remediar o atraso fazendo-nos acertar o passo com a marcha da civilização.

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