Natal que se preze inclui a passagem do filme Música no Coração num qualquer canal de televisão em sinal aberto. Não sei se este ano assim será, mas costuma. Enquanto novos e velhos se debatem com filhós, rabanadas e presentes, lá está Julie Andrews a cantar estridentemente ao fundo: The hills are alive with the sound of music. Nunca vi o filme no cinema, mas habituei-me a vê-lo em casa durante certas tardes de domingo ou feriado, muitas vezes no Natal. Os meus sentimentos em relação a ele foram mudando ao longo do tempo. Durante anos, Música no Coração era aquela pepineira repugnante que ocupava a tarde toda e me afastava logo da televisão. Julie Andrews era horrível, as crianças irritantes e a música, meu Deus, a música, um pavor. Até que um dia, já próximo dos 30 anos, depois de várias tragédias pessoais, uns quantos livros de História e umas aulas de música, alguém me convenceu a vê-lo do princípio ao fim. Foi uma revelação..Tudo começou pela música. Poucos filmes reunirão tantos clássicos instantâneos da música popular do século XX, desde Sixteen Going On Seventeen até Do-Re-Mi, passando sobretudo por Edelweiss, Climb Ev'ry Mountain e My Favourite Things. Claro que à época eu já sabia que Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II eram uma das mais importantes parelhas do musical americano. E também já tinha ouvido a versão de John Coltrane de My Favourite Things. Mas a música só tem a ganhar quando inserida no contexto do filme. Quem consegue ouvir a madre superiora a cantar Climb Ev'ry Mountain ou o capitão Von Trapp a cantar Edelweiss sem se esforçar por conter um arrepio resta-lhe pouco de humano. Depois, foi o artifício narrativo do filme: a fase luminosa da infância, à sombra da preceptora Maria, antecedendo a tragédia. O mundo infantil e inocente, enquadrado pelas igrejas e conventos de Salzburgo, os palácios aristocráticos e as montanhas dramáticas dos Alpes austríacos, serve de prelúdio à destruição da Europa pelo nazismo e a guerra..Pouco importa que o filme não seja uma obra-prima. A verdade é que é muito melhor do que se diz. Lá porque já não se faziam filmes assim em 1965 não quer dizer que os filmes que se faziam em 1965 mereçam hoje qualquer atenção, ao contrário deste. Também nem toda a gente sabe que Robert Wise não era um mero tosco: montou as duas obras-primas de Orson Welles Citizen Kane e The Magnificent Ambersons e fez ele próprio excelentes filmes (The Set-Up, por exemplo, ou mesmo West Side Story, um musical muito mais negro e também com excelente música, de Leonard Bernstein). Pouco importa que Julie Andrews seja efectivamente irritante. Pouco importa também que quase tudo no filme seja mentira em relação à vida real. O Von Trapp verdadeiro não era nenhum velho aristocrata, mas um mero capitão a quem foi concedido o baronato por feitos heróicos na I Guerra Mundial. Pouco importa que Maria e o capitão se tivessem casado 12 anos antes do Anschluss e que Maria sempre tenha gostado mais das crianças do que do capitão. Pouco importa que as crianças já cantassem há vários anos em espectáculos públicos, para fazer dinheiro, depois de o capitão se ter arruinado durante a crise dos anos 30. Pouco importa que a família nunca tenha atravessado os Alpes a pé em direcção à Suíça, mas muito prosaicamente de comboio para a Itália. Pouco importa que a Áustria que Hitler ocupava em 1938 fosse a de Dolfuss e Schuschnigg, ditadores especializados em encher as prisões de opositores. O mais importante é o que o filme nos diz para além das concordâncias factuais..Porque ele serve sobretudo como fábula sobre o fim e o recomeço. Ideia que é aplicada à queda da velha Europa optimista dos tempos anteriores ao século XX. O que é sublinhado pelo facto de a acção se localizar na Áustria, que fora até 1919 a sede do Império Austro- -Húngaro, esse exemplo maior de uma ordem europeia enquadrada pela nobreza e a Igreja, mas que estava já desfazer-se no século XIX e se desfez definitivamente no século XX. É como se o filme nos quisesse mostrar o mundo feliz da velha civilização europeia, destruído pela barbárie incompreensível que se seguiu e de que o continente nunca recuperou inteiramente até hoje. O protagonismo das crianças acentua isso mesmo, como se à inocência se seguisse a completa escuridão. Mais uma vez, pouco importa que essa Europa nunca tenha realmente existido e seja sobretudo um artíficio dramático. A verdade é que, para um realizador americano, a luz passou a estar noutro lado. Não é acidental que os Von Trapp se tenham refugiado na América, onde continuaram a fazer os seus espectáculos e abriram o famoso Von Trapp Lodge, por entre as montanhas e a floresta (tão belas quanto as austríacas) do estado do Vermont. É estranho que o cinema não tenha tratado mais este tema, reservando-o para um filme aparentemente pueril. Mas é assim. Como (esperemos) se verá este Natal outra vez.