O não fuzilamento que salvou Portugal

Publicado a
Atualizado a

Resumindo, é assim: 45 anos depois, uma revolução celebrou-se com uma gravação. Entre outras coisas, a revolução libertara a palavra dos seus cidadãos. É importante a palavra, é importante que eu posso dizer "o Presidente da República é lelé da cuca". Ele não o é, acho que não, mas é importante que eu possa dizê-lo. Pelas palavras ditas sabemos que as coisas são, não são, ou talvez sejam assim-assim. Por isso, trago para aqui a tal gravação de palavras que tão bem celebrou neste ano o 25 de Abril.

A gravação foi feita numa noite nervosa de março de 1975, mais de oito horas, em assembleia que reuniu mais de 200 militares. Os militares fazem guerras que, como dizia o outro, são demasiado importantes para serem feitas por militares. Tirando o Clausewitz, o Sun Tzu e o Melo Antunes, os militares não se ilustram geralmente pela palavra. Digo isto para avisar que daquele ajuntamento de 200 fardados, e em noite nervosa, podia não se esperar grande espingarda. E, no entanto, foi luminoso.

A revolução foi feita a 25 de abril de 1974 e, como já disse, entre os seus grandes méritos libertou a palavra. Pensem nisto: sem ela, não teríamos Herman José convidando o Diácono Remédios a ir à televisão (teríamos os Diáconos Remédios na televisão a proibir o Herman). Pouco depois, na manhã de 11 de março de 75, revoltosos bombardearam um quartel, fizeram feridos e um morto. À noite, com militares do quartel e os mais importantes líderes militares, aconteceu a tal assembleia em que se gravaram as palavras ditas. Proclamadas (que é como se fala nas assembleias), palavras tolas e inteligentes, muito, pouco e assim-assim. Sigamo-las.

Desde sempre se soube que, naquela noite, uma palavra foi dita por alguns, "fuzilamento". Leia-se: que os revoltosos presos, alguns ou todos, fossem encostados ao paredón, como nas tragédias dos generais Tapioca. Foi mesmo dita? Insinuação? A palavra ficou a pairar... A gravação esteve no poder de um dos líderes militares, o hoje vice-almirante Almada Contreiras, que com o jornalista Jacinto Godinho analisou as oito horas e meia da bobina que foram passadas a livro, A Noite Que Mudou a Revolução de Abril, lançado na passada segunda-feira.

Na véspera deste 25 de Abril, quarta, Almada Contreiras e Jacinto Godinho, acompanhados por Vasco Lourenço, outro homem de Abril, apresentaram na RTP o trabalho levado a livro. E no programa ouviu-se, da gravação, a tal palavra: "Fuzilamento." Foi importante ouvi-la. Alguns dos 200 participantes da assembleia disseram "fuzilamento". As palavras levam-nas o vento - às vezes.

Podemos confirmar: houve gente que pediu fuzilamento. Ora, sabemos: não houve fuzilamento nenhum. Podemos, pois, dizer, essa que é essa: feliz do povo que, tendo-lhe sido dada a palavra, com ela não fuzilou. Não houve fuzilamento nenhum. A estupidez, a maldade e o medo podem levar à palavra errada, mas pela palavra os homens libertam-se. Não foi por acaso que nenhum revoltoso foi fuzilado. Foi porque a palavra boa combateu a palavra ignóbil. Aquela noite, afinal, não mudou a Revolução de Abril, confirmou-a.

As gravações fazem ouvir vários militares - e de várias tendências - a dizer, com a inteligência de Clausewitz, Sun Tzu e Melo Antunes, que não. Disseram-no, do almirante "vermelho" Rosa Coutinho ao major Costa Neves. Este até à ironia recorreu: "O major Varela Gomes está vivo ou morto?" Varela Gomes levantou-se: "Estou vivo." Ele que atacara o quartel de Beja em 1961, fora ferido e preso, mas nem no tempo da ditadura foi fuzilado... O Presidente da República Costa Gomes fechou a assembleia: "Não está na tradição do povo português, nem do Exército português, fazer fuzilamentos a frio."

E foi assim, por um som de bobine antiga, que soubemos mais uma vez que o 25 de Abril é o orgulho de um povo. Porque esse povo é assim, é assim mesmo.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt