"O Muro", thriller feito com ADN da história recente

A partir de quinta-feira nas salas portuguesas, "O Muro" é um filme que nos devolve o cenário da guerra do Iraque em tom de thriller, com realização de Doug Liman. Aqui a palavra é uma arma
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Um filme pode ser, ao mesmo tempo, um labor de género e um apelo à memória histórica, sem que um atributo desequilibre o outro na fórmula? Há uma tendência generalizada para sucumbir ao mero exercício de cinema bafejado de simbolismo, ou às alegorias que deturpam a génese dessa memória. É preciso que a forma e o conteúdo se encontrem.

Com O Muro (estreia-se na próxima quinta-feira entre nós), o realizador Doug Liman parece ter pretendido essa espécie de dois em um: um thriller feito com ADN da história recente. Não só o pretendeu como, pode-se dizê-lo à cabeça deste texto, conseguiu. Assim, à já expressiva lista de títulos filiados pelo desassossego americano em relação ao maldito capítulo histórico da ocupação do Iraque - de que saltam à vista Estado de Guerra e Sniper Americano, para além dos dramas fora do campo de batalha, como No Vale de Elah ou O Mensageiro - junta-se este autêntico jogo de tabuleiro, com três peças e muita poeira do deserto a dificultar os lances.

São essas peças dois soldados americanos e um inimigo invisível, que se dedicará à manutenção do suspense pelo uso e perfeito domínio da palavra. O ano é 2007, altura em que a guerra do Iraque estaria "oficialmente" terminada, e estes homens encontram-se mesmo no centro da teia de aranha de um sniper do exército islâmico conhecido por Juba, "o anjo da morte", que os observa de ponto incerto, escolhendo minuciosamente a artéria dos seus corpos em que lhe convém acertar (assim o chega a referir).

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O muro de que nos fala o título não tem, portanto, nada que ver com migrantes ilegais... a leitura mais imediata que se faria por estes dias. Neste contexto, não passa de uma parede em ruínas, com aparência de enorme fragilidade, atrás da qual se vai esconder um dos soldados (Aaron Taylor-Johnson), depois do seu colega (John Cena) ser baleado. É praticamente o único abrigo num amplo cenário árido, com a morte semeada um pouco por todo o lado. Mais importante ainda: é a barreira exclusiva que separa as forças antagónicas.

Com as ligações do rádio cortadas, e uma frequência intercetada pela voz do inimigo, enceta-se então o tour de force de Taylor-Johnson, que, depois do Globo de Ouro ganho com Animais Noturnos, vem aqui alicerçar uma forte presença no grande ecrã.

E tem tudo para que assim seja. Desde a aspereza da paisagem, enfatizada pela secura fotográfica, o calor extremo, a falta de água e uma ferida aberta na perna, há uma intensidade física que entra em vívido contraste com o requinte da manipulação psicológica. Como lidar com uma voz que evidencia o mecanismo de tortura no próprio ato de comunicação? Como combater a sua superioridade intelectual? Será o treino suficiente para evitar a mira de quem cita Edgar Allan Poe a um ocidental que apenas conhece Shakespeare? Esta é a verdadeira batalha que se vê no filme. Um minimalismo narrativo que permitiu adensar a fronteira cultural.

Rodado em 14 dias no deserto da Califórnia, com produção da Amazon Studios, valerá a pena notar que O Muro assinala uma impactante disparidade relativamente à anterior longa-metragem de Liman, No Limite do Amanhã, com Tom Cruise no meio de uma excessiva elaboração técnica... Sem incorrer no simplismo de confundir a qualidade com a matéria intrínseca a cada filme, é francamente mais sedutora a ideia de perceber o que um realizador no auge da predisposição tecnológica é capaz de fazer adelgaçando os meios e a circunstância narrativa. Neste caso, o chamado passar de cavalo para burro foi uma opção bastante louvável.

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