O mundo perfeito de Clint Eastwood
Em 1993, quando Imperdoável, de Clint Eastwood, arrebatou quatro Óscares da Academia de Hollywood, incluindo melhor filme do ano e melhor realização, havia espectadores a mostrarem uma genuína surpresa: afinal, Clint Eastwood também realiza filmes... Agora que o LEFFEST o homenageia, vale a pena voltar a lembrar que o seu protagonismo da trilogia de westerns de Sergio Leone (terminando com O Bom, o Mau e o Vilão, em 1966), e também a sua personagem do polícia Harry Callahan (começando com Dirty Harry/A Fúria da Razão, em 1971), estão longe de esgotar a pluralidade do seu universo - na verdade, antes de Imperdoável chegar às salas de cinema, Eastwood dirigira nada mais nada menos que dezasseis longas-metragens, tendo-se estreado nessa função em 1971, com um belo thriller intitulado Play Misty for Me (entre nós Destinos nas Trevas).
Hoje em dia um objeto politicamente incorreto, Play Misty for Me é um dos 25 títulos com que o LEFFEST celebra o ator/realizador que, além do mais, sinaliza de forma inequívoca a paixão jazzística que habita a sua obra: o "Misty" do título é a lendária composição do pianista Erroll Garner (1921-1977). Sem esquecer que vai ser possível ver ou rever esse insólito ensaio poético que é Bronco Billy: produzido em 1980, nele encontramos o primeiro gesto de reconfiguração e, em boa verdade, decomposição da "imagem de marca" de Eastwood, assumindo a personagem de um cowboy de um espectáculo itinerante dedicado ao "Wild West". Que é como quem diz: as ilusões de heroísmo dão lugar, na socedade de consumo, a um desencantado esvaziamento da mitologia clássica.
Ao longo das décadas, tudo isto foi acontecendo com Eastwood a assumir-se também como produtor. Assim, logo após o sucesso da trilogia de Leone, fundou a Malpaso Productions, companhia que coordena todo o seu trabalho, quase sempre tendo a Warner Bros. como aliada na distribuição. Apesar de, no essencial, quase só servir para produzir os filmes interpretados e/ou por ele realizados, a Malpaso é reconhecida em Hollywood pelo seu rigor financeiro: Eastwood tem mesmo fama de ser capaz de terminar a rodagem dos filmes abaixo do orçamento e antes da data prevista.
Há muito que a sua evolução se distanciou do universo do western, explorando caminhos que o definem como um caso raro de versatilidade temática e criativa. Nesta perspetiva, Eastwood é um herdeiro directo de mestres do classicismo de Hollywood como Michael Curtiz ou Billy Wilder, oscilando serenamente entre as ambiências da música country em A Última Canção (1982) e a parábola social no prodigioso e tão pouco conhecido Um Mundo Perfeito (1993), passando, claro, pelo retrato de Charlie Parker em Bird (1988), filme que será apresentado por Branford Marsalis - entre os convidados anunciados para comentar vários momentos deste ciclo estão também Kyle Eastwood, filho do realizador, e o escritor John Carlin.
Tendo em conta que, por vezes, o tratamento mediático da sua obra se esgota numa banal imagem "lendária", será importante acrescentar que o questionar da identidade americana em diferentes momentos históricos é algo que, mesmo quando não é explicitado, circula por todo o seu trabalho - do brilho da redenção ao confronto com os fantasmas da própria história.
Entretanto, como está na moda sugerir que os grandes papéis femininos de Hollywood são um produto "ideológico" do movimento #MeToo, citemos o esplendoroso trabalho de algumas atrizes dirigidas por Eastwood em filmes presentes no LEFFEST: Jessica Walter (no já referido Play Misty for Me), Meryl Streep (As Pontes de Madison County, 1995), Laura Linney (Mystic River, 2003), Hilary Swank (Million Dollar Baby, 2004) ou Sienna Miller (Sniper Americano, 2014). Para evitar sexismos, convém também ver o genial Kevin Costner em O Mundo Perfeito.