O mundo não tem de ser assim
E Este é o título da volumosa obra que conta a biografia de António Guterres, da autoria de dois investigadores, Pedro Latoeiro e Filipe Domingues que têm aqui o seu primeiro (e muito auspicioso) livro. Logo no início se regista o desinteresse do secretário-geral das Nações Unidas por contar a sua história, só tendo acedido porque os dois autores garantiram não ter agenda nem partido político, tratar-se de um projeto independente, sem qualquer financiamento institucional e que pretendia dar visibilidade ao papel das Nações Unidas e às ideias do português que liderava a Organização. Ficou acordado que terminariam a narrativa no momento da sua eleição.
Além de quatro encontros presenciais com o já secretário-geral da ONU, em que nenhuma pergunta foi cortada ou ficou sem resposta, a obra baseia-se ainda em 120 entrevistas a muitos dos que trabalharam de forma próxima com António Guterres, incluindo chefes de Estado e de Governo.
É um gosto ler este minucioso trabalho de reconstituição de histórias e acidentes, e talvez até uma possibilidade irrepetível de conhecermos o percurso de alguém que, interrogado sobre a possibilidade de escrever essas memórias, responde que nunca o fará, não toma notas, não tem diário e deita fora os papéis, o que tem como vantagem, segundo sublinha, pensar sempre para a frente e não para trás.
Além do prazer de uma leitura que se faz agilmente, é inevitável a emoção que a acompanha e também esteve presente na apresentação do livro, simbolicamente realizada no Cento de Refugiados da Bobadela, com a participação de Mónica Ferro, diretora do Escritório em Genebra do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), e de António José Seguro, um dos colaboradores próximos de António Guterres. Talvez o que mais nos toca como cidadãos é o seu sentido do que significa a política como serviço para o bem comum, como também as fortes crenças que o acompanham desde o início do seu percurso, quando ainda se vislumbra que poderá ser um investigador de alto nível e ele contrapõe que talvez um engenheiro social. Pela sua formação e convicção, não é surpreendente a referência à Parábola dos Talentos que cita do Evangelho de São Mateus, justificando por seu meio a obrigação que cada um tem de colocar ao serviço do coletivo as suas capacidades, permitindo que esses talentos se multipliquem. Essa é, decerto, uma das razões para fazer da educação a sua paixão nos Governos a que presidiu, o que muitos consideraram mais um chavão político, habituados que estavam à diferença entre palavras e ação. É verdade que tentou fazer da política aquilo que ela é: um bom Governo para benefício dos cidadãos. E por isso se demitiu nesse final de 2001, genuinamente convicto do pântano do jogo de interesses que se movia na sociedade portuguesa.
Em 2005, quando é nomeado Alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, contrariando as expectativas de ascensão de poderosos candidatos, António Guterres chega a uma organização que despendia mais em estrutura do que nas ações que executava. Desde o princípio torna claro que vem para mudar, o que consegue fazer envolvendo as pessoas e gerando consensos, mas sobretudo alcançando respostas e soluções para os problemas reais.
Também assim foi na forma como ascendeu ao lugar de secretário-geral das Nações Unidas. Característico da sua forma de atuar é o exemplo revelado neste livro da sua estratégia de comunicação: não comunicar ou fazê-lo o menos possível nos moldes habituais das campanhas, preferindo apresentar-se ele próprio e falar com os interlocutores.
António Guterres chegou às Nações Unidas num dos mais difíceis momentos da sua ação, sob a ameaça penosa de ventos políticos apostados em enfraquecer o multilateralismo, de que se ressentiram todas as organizações internacionais. Nunca desistiu e manteve o diálogo, ao mesmo tempo que continuou a sua ação a favor dos mais vulneráveis que são também as principais vítimas das alterações climáticas. Também foi ele que ergueu a voz durante a pandemia alertando para as suas devastadoras consequências. Estamos talvez num novo momento. A pandemia veio demonstrar que problemas globais precisam de soluções globais. António Guterres é o homem que precisamos nas Nações Unidas, conseguindo encontrar caminhos que tragam alguma luz à escuridão de muitas existências, porque o mundo não tem de ser assim.
Diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos