O mundo complexo em desenhos de traços simples

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Na sala de espera de um consultório de psicanálise, figuras míticas como a fada-madrinha, o fantasma, o unicórnio e a sereia encontram-se sentados num sofá com um ar depressivo à espera da hora da sua consulta. A última pessoa a chegar é uma mulher com uma venda e uma balança na mão, a Justiça, com quem o Pai Natal (outro dos protagonistas deste desenho com figuras imaginárias) decide meter conversa "Deixa-me adivinhar... também já ninguém acredita que existes..."

A ilustração, da autoria do nicaraguense Pedro Xavier Molina, é um dos mais de 240 trabalhos que preenchem as paredes do segundo piso do Centro Olga Cadaval, em Sintra, e que dá forma à primeira edição do World Press Cartoon, a decorrer até quinta-feira. O evento estreia-se no ano em que se comemora o centenário da morte de Rafael Bordalo Pinheiro, o pai da caricatura moderna nacional, e pretende chamar a atenção para a complexidade "escondida" nos traços simples de um cartune, um género jornalístico que alia a componente de actualidade com, quase sempre, o humor.

"O interesse deste salão é, precisamente, a diversidade de estilos, as várias abordagens de temas - mesmo quando estes são os mais comuns. Se se olhar para os cartunes, encontra-se aqui o [George] Bush retratado de 20 maneiras diferentes, de acordo não só com o local, mas também com a geração do seu autor", explica ao DN Rui Paulo da Cruz, um dos organizadores do World Press Cartoon.

Um olhar mais atento pelas molduras ilustradas, que se encontram divididas em três áreas gráficas distintas - cartune editorial, caricatura e desenho de humor -, deixa perceber que, na verdade, o presidente dos Estados Unidos foi um dos alvos preferidos dos criadores participantes, oriundos de 50 países, com trabalhos publicados na imprensa no ano passado Bush surge com nariz de pinóquio, literalmente "às turras" com John Kerry, num combate de boxe mediado por Ben Laden, com traços fisionómicos de macaco ou trajado de Napoleão. Mas não é a única personalidade que se repete em mais do que um cartune. O novo líder da Comissão Europeia, Durão Barroso, o presidente da Ucrânia, Viktor Iuchtchenko, ou o cineasta Michael Moore, que surge de boné e obesidade exagerada, foram outras das figuras de relevo de 2004, ano em que o conflito do Médio Oriente, as eleições presidenciais norte- -americanas ou a queda do líder cubano, Fidel Castro, após um discurso dominaram a agenda política e inspiraram o lápis colorido de alguns cartunistas.

"O World Press Cartoon é um desafio ambicioso, mas há um mundo de desenhos na imprensa de todo o mundo os jornais estão cheios de caricaturas e ilustrações. Não me parece excessivo fazer um salão em que esses trabalhos estejam em competição e em que, paralelamente, se promova o convívio entre os autores", esclarece António Antunes, director do evento e desenhador com obra publicada em jornais como o Expresso.

Das publicações nacionais presentes no World Press Cartoon conta--se o DN, o Público (ambos com três trabalhos), o Expresso e as revistas Focus e VIP (todos com um cartune presente). O artista André Carrilho foi o único português premiado nas dez atribuições feitas nesta edição (que, ao todo, contém um grande prémio e três distinções por cada categoria) com uma ilustração de tributo à cantora de jazz Billie Holiday (ver capa). Este trabalho, terceiro prémio de Caricatura, foi capa do suplemento ABC do jornal britânico The Independent on Sunday.

'Ilhas' no mar de palavras. O humor começou a ganhar espaço na imprensa ainda no século XIX e os primeiros desenhos cómicos apareceram na ausência de fotografias. Quem o recorda é António Antunes, que justifica também o recente impulso do cartoon como "uma consequência de estarmos num período de supremacia da imagem sobre tudo o resto". Esta evidência faz com que, "já com um maior uso do computador como instrumento de trabalho", as ilustrações humorísticas surjam como "ilhas face aos mares de letras" dos textos noticiosos.

Este salão internacional do desenho jornalístico é a concretização de um projecto pensado há vários anos para colmatar o desaparecimento do Salão de Montreal, uma referência para os vários ilustradores que se realizou até 1988.

Na sua concepção, desde os critérios de selecção e avaliação dos trabalhos (ver texto ao lado) à escolha dos elementos do júri e ao valor estimado para cada prémio (um dos mais elevados a nível internacional), o World Press Cartoon procura o prestígio desde o início e a direcção acabou por escolher Sintra como o local indicado para materializar a iniciativa. Para Rui Paulo da Cruz, "Sintra é, por um lado, uma escolha natural, no sentido em que é um município da Grande Lisboa, está perto do centro, é Património da Humanidade e, por outro, é um local muito visitado por turistas, com uma grande tradição na pintura e nas artes plásticas".

Para esta primeira edição, as expectativas eram poucas, dado não existirem termos de comparação. Mesmo assim, a direcção parece satisfeita com os resultados de um evento que se assume "como um projecto global, em tempo de tantas globalizações".

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