O Mundial de râguebi vai começar. Todos contra os All Blacks
Sendo uma das mais antigas modalidades do mundo e aquela que mais tempo manteve o estatuto amador - a federação inglesa surge em 1871 e o famoso Torneio das Cinco Nações foi criado em 1883 -, não deixa de ser curioso que só em 1987 se tenha disputado o primeiro Mundial de râguebi. E apenas em 1995, após a terceira edição realizada na África do Sul (e ganha por Nelson Mandela), a conservadora International Rugby Board autorizou por fim o profissionalismo. E assim, o Mundial do Japão que arranca nesta sexta-feira tendo a sua final marcada para 2 de novembro, será apenas a nona Taça do Mundo, na primeira vez que a competição irá decorrer na Ásia, continente onde mais fãs do râguebi se encontram (cerca de 112 milhões).
Nas próximas seis semanas, 12 estádios vão acolher os 48 jogos da prova para os quais já se encontram vendidos 1,7 milhões de bilhetes (cerca de 96% da capacidade dos estádios). Após um demorado processo de qualificação que envolveu 94 países, serão 20 as seleções participantes, divididas por quatro grupos na fase inicial, naquele que será o maior evento desportivo do ano e o terceiro à escala mundial, só superado pelos Jogos Olímpicos e o Mundial de futebol, únicos com maior assistência nos campos, exposição mediática e impacto comercial. Em Portugal, todos os jogos podem ser acompanhados em direto na SportTV.
Só quatro nações se sagraram campeãs do mundo: Nova Zelândia (1987, 2011 e 2015), Austrália (1991 e 1999), África do Sul (1995 e 2007) e Inglaterra (2003), na única edição conquistada por uma seleção europeia. Os bicampeões All Blacks são os grandes favoritos a erguer a Webb Ellis Cup mais uma vez, mas terão de contar com as fortes candidaturas de África do Sul e Inglaterra numa primeira linha, mas se alargarmos o espectro, também Irlanda, País de Gales e a inconstante mas sempre difícil Austrália podem aspirar à glória.
Nos últimos anos e com a adoção de várias medidas com o intuito de promover o espetáculo e a verdade desportiva, o râguebi vem atraindo um número crescente de adeptos. E este Mundial, irrepreensivelmente organizado pelo Japão - queira a natureza colaborar, já que este costuma ser o período crítico para tsunamis, sismos e furações na região -, nos permitirá abraçar uma modalidade cada vez mais atrativa e global.
A Irlanda, atual nação n.º 1 do ranking mundial, é favorita neste grupo, após um ano pouco positivo para os homens de Joe Schmidt (melhor seleção do mundo em 2018), tendo em conta o que o neozelandês conseguiu ao leme dos irlandeses desde 2013: três Seis Nações, umas séries ganhas no ano passado na Austrália e, mais recentemente, os dois primeiros triunfos na sua história diante dos All Blacks.
Os irlandeses podem aspirar aos mais altos voos - em Taças do Mundo nunca passaram dos quartos-de-final (por seis vezes se quedaram nesta fase) - mas terão de elevar o nível das mais recentes prestações, pese embora os dois triunfos conseguidos diante de Gales nas últimas semanas. E essa melhoria só acontecerá se Jonathan Sexton, peça vital no seu modelo de jogo, recuperar a forma que o fez ser eleito o melhor jogador do mundo em 2018. Mas aos 34 anos e após uma série de problemas físicos que o afastaram dos relvados por muitos meses, as dúvidas são muitas...
Se a Irlanda vencer o grupo irá defrontar a Nova Zelândia (2.ª do mundo) ou a África do Sul (4.ª) nos quartos. Ou seja, um dos quatro melhores países do mundo não atingirá as meias-finais.
A Escócia e o Japão irão lutar pela 2.ª posição, tal como fizeram no seu grupo no Mundial 2015, com os escoceses a saírem por cima e os nipónicos a serem a primeira nação a vencer três jogos na fase de grupos sem conseguir o apuramento. Desde aí, a Escócia, sob o comando de Gregor Townsend, tem somado melhores resultados, incluindo duas vitórias sobre a Argentina e, supremo orgulho para um escocês, a Calcutta Cup frente aos arquirrivais ingleses nos dois últimos anos. O regresso do defesa Stuart Hogg, melhor jogador do Seis Nações em 2016 e 2017 (e que falta fez neste ano...) vai dar um enorme impulso à equipa dada a facilidade com que, sozinho, pode virar o destino de uma partida. Mas os médios Laidlaw e Finn Russell são igualmente peças insubstituíveis.
Já o Japão, apesar de derrotado pela África do Sul no derradeiro teste, recebe a prova com o moral em alta pelo triunfo na Pacific Nations Cup. O neozelandês Jamie Joseph já declarou querer ser o primeiro selecionador a levar os nipónicos até aos quartos-de-final. O fator casa pode ser mesmo relevante e causar a surpresa da prova. Conseguirão recuperar a magia de 2015 quando a Escócia esteve perto de ser eliminada pelos Brave Blossoms então treinados por Eddie Jones?
Os japoneses contam ainda com o experiente capitão Michael Leitch, neozelandês que os representa desde 2008 e já os liderava no histórico triunfo sobre a África do Sul em Brighton, selando uma exibição soberba concluída com a decisão do jogo quando, em cima do apito final, em vez de uma penalidade aos postes, optou por jogar à mão num lance que daria o ensaio vencedor que fez o mundo abrir a boca de espanto.
Samoa já desfrutou muito em Taças do Mundo tendo atingido as meias-finais em 1991 e 1995. Mas, nos últimos anos, o seu declínio é evidente e é apenas a atual 16.ª do ranking mundial e assim dificilmente poderá bater qualquer das três seleções acima de si.
Já a Rússia, na sua segunda presença em Mundiais, vai ser última. A derrota por 85-15 (!) frente à Itália, em agosto, mostra que os russos - que só aqui estão devido aos castigos por má inscrição de jogadores de Espanha e Roménia - estão ainda muito longe do nível pretendido.
Com um total de cinco Mundiais entre si, Nova Zelândia e África do Sul irão passar sem problemas à fase seguinte. Curiosamente, o duelo entre ambos será o primeiro jogo do grupo e dará o tom ao desempenho das duas equipas (e quem vencer escapará a defrontar a Irlanda nos quartos...). Com a forma que mostraram no Championship, os Springboks - não ganhavam a prova desde 2009 - viram as possibilidades de êxito aumentarem significativamente. Será um combate entre dois estilos diferentes de jogo com o modelo de ataque expansivo e arriscado do jogo all black a contrastar com o pragmático modelo sul-africano.
A Nova Zelândia procura o terceiro título mundial consecutivo e Steve Hansen, de despedida, escolheu um misto de jogadores de enorme experiência refrescado por jovens de inegável categoria, como os pontas Sevu Reece e George Bridge. E se a omissão do pilar bicampeão mundial Owen Franks causou estranheza, o mais rico lote de atletas em prova - o melhor jogador do mundo em 2017 e 2018 Beauden Barrett a 10 ou 15, Richie Mo'unga como alternativa (jogamos com um Rolls-Royce ou um Jaguar?), dois fabulosos médios de formação, a melhor 2.ª linha mundial com Sam Whitelock e Brodie Retallick, liderados pelo capitão Kieran Read - permite desbloquear qualquer jogo, por vezes com laivos de brilhantismo.
Mesmo reconhecendo que os All Blacks têm estado algo distantes ao que já nos habituaram e foram apenas terceiros no Championship, são ainda os maiores candidatos à conquista do troféu, aqueles que todos querem bater. Veja-se os 36-0 com que responderam ao triunfo australiano (47-26) para reconquistarem a Bledisloe Cup...
A África do Sul inicia o Mundial com a confiança em níveis máximos - e tem razão para tal. Desde 2018 a liderança de Rassie Erasmus fez renascer o gigante adormecido duas vezes campeão mundial (1995 e 2007). Pragmático e inteligente tem efetuado uma judiciosa rotatividade na equipa e conseguiu uma profundidade de plantel que dá garantias de um bom desempenho. Mesmo com a ausência do ponta Aphiwe Dyantyi (suspenso por doping) nomes como Cheslin Kolbe e Sbu Nkosi só precisam de uma nesga de espaço para marcar. E, em Handré Pollard, os Springboks têm, para lá de um excelente organizador de jogo, talvez o melhor pontapeador da prova.
A Itália não terá dificuldades para ser 3.ª e qualificar-se diretamente para o Mundial 2023 em França. Apesar do talento de muitos jogadores, os azzurri continuam a não obter resultados convincentes (foram últimos no Seis Nações e, tal como em 2018, só com derrotas!) e não vai ser agora que o cenário será alterado. E se os desaires diante dos favoritos deverão ser por números pesados, já frente a Canadá e Namíbia (equipas com pior ranking do Mundial, ambas atrás de Portugal...) a seleção de Conor O'Shea vencerá sem problemas. Numa equipa onde se despedirá o veterano capitão Sergio Parisse e que jogadores como Campagnaro, Minozzi e Polledri poderão causar impacto.
O duelo entre Canadá - nunca falhou um Mundial mas desta vez foi a última seleção a apurar-se no torneio de repescagem final - e Namíbia será o derradeiro do grupo e servirá para definir o último classificado. A Namíbia qualificou-se ao vencer a África Gold Cup e quererá, finalmente e na sua sexta participação desde 1999, vencer um jogo. Até agora disputaram 19 e perderam todos...
O denominado "grupo da morte" é o único com três claros candidatos - Inglaterra, França e Argentina - que se irão digladiar pelos dois lugares de acesso aos quartos-de-final. O maior favoritismo terá de ser atribuído à equipa da rosa, com excelentes resultados na fase de preparação incluindo claras vitórias sobre Gales e Irlanda - e até porque quererá apagar a péssima atuação no Mundial 2015 quando, sob Stuart Lancaster, não passou da fase de grupos, a primeira vez que tal aconteceu ao país organizador. Agora com Eddie Jones ao leme (com o Japão cumpriu um fantástico Mundial 2015) as esperanças inglesas estão de novo em alta, fruto da impressionante lista de jogadores convocados, com destaque para a sua gigantesca avançada (irmãos Vunipola, Itoje, Kruis, Launchbury, Lawes...) e linhas atrasadas rápidas e poderosas (Tuilagi, Slade, May, Daly e Cokanasiga fariam as delícias de muitas seleções), com Owen Farrell, como sempre, a reger uma orquestra que surge mesmo muito afinada.
A França nunca venceu um Mundial mas esteve em três finais - e é a única seleção europeia sempre na fase a eliminar - e como habitualmente será um enigma, capaz de passar do excelente ao desastroso em poucos dias - e até durante o mesmo jogo! Como na bela vitória caseira diante da Escócia em agosto (32-3), seguida do desaire, uma semana depois frente ao mesmo adversário, com uma exibição deplorável. Os incorrigíveis gauleses são sempre controversos e capazes de tirar da cartola um inimaginável coelho. Lembram-se do Mundial 2011, quando uma seleção esfrangalhada, com atletas que não se falavam e o selecionador Marc Lièvremont criticado e praticamente despedido, acabaria por atingir a final, perdendo por 8-7 frente aos anfitriões neozelandeses?
Os pumas, depois de um Mundial 2015 em que impressionaram (4.º lugar), têm um lote de jogadores capazes de causar problemas a qualquer um, mesmo com as estranhas omissões de Santiago Cordero e Facundo Isa entre os convocados. Inesperadamente, e depois dos Jaguares (praticamente a sua seleção) terem pela primeira vez atingido a final do Super Rugby deste ano, a equipa denotou demasiadas debilidades no Championship, praticando um râguebi pouco empolgante e sem imaginação. E até as fases estáticas têm corrido muito mal, o que não deixa de ser estranho quando se sabe ser o selecionador Mario Ledesma um reconhecido especialista na matéria...
Com estes três gigantes a disputar as posições cimeiras, Estados Unidos e Tonga vão lutar pela fuga ao último lugar. Os Estados Unidos, comandados pelo sul-africano Gary Gold, estão num patamar superior e recentemente conseguiram mesmo alguns bons resultados como vitórias sobre Samoa (duas) e Escócia. Os Eagles têm também no médio de abertura AJ MacGinty (alinha nos ingleses dos Sale Sharks) um excelente chutador e um bom distribuidor de jogo, sendo vital para o desempenho norte-americano.
Já os homens do Pacífico Sul vêm numa acentuada curva descendente desde o Mundial 2011 quando impressionaram e bateram a que viria a ser finalista França (19-14). Em 2015, o Tonga apenas venceu a Namíbia na fase de grupos e para lá de resultados pouco convincentes neste ano, no derradeiro apronto foram cilindrados pela Nova Zelândia, por 92-7 (e como parte do treino, os All Blacks jogaram os últimos minutos só com 14).
Outro grupo com duas seleções que se destacam mas que pode trazer algumas surpresas. O País de Gales, vencedor do Seis Nações deste ano com Grand Slam e que em agosto atingiu o topo do ranking mundial após 509 semanas de domínio all black (posição já perdida sendo agora 5.º) parece não estar no seu melhor momento mas seria estranho que tudo se desmoronasse no Japão.
Os galeses viram concluída, há um mês, a incrível sequência de 14 vitórias consecutivas às mãos da Inglaterra e cederam perante a Irlanda nos dois derradeiros testes antes da prova e sabem que, na despedida, Warren Gatland (ao leme da seleção desde 2007) tem algo a provar sobre a sua candidatura ao título. Gales terminou no ano passado a série de 13 derrotas seguidas diante da Austrália (9-6 em Cardiff) pelo que o duelo entre as duas seleções será fascinante. Três confortáveis triunfos perante as equipas mais fracas do grupo e uma vitória sobre os Wallabies poderão levar a equipa a uma meia-final e fazer muita gente mudar de opinião.
Quanto à Austrália, tem a reputação de ser uma equipa vocacionada para Mundiais (dois triunfos em 1991 e 1999 e mais duas finais perdidas) mas "o caso Israel Folau" (viu o seu contrato cessado após batalha com a federação australiana decorrente de comentários homofóbicos nas redes sociais, com o processo a ser arrastado para os tribunais) enfraqueceu muito a formação de Michael Cheika, que se vê assim desfalcada de um dos melhores jogadores do mundo.
Vital será sabermos o atual estado físico do inspirador David Pocock, regressado apenas no último jogo de preparação após largos meses de paragem devido a lesão. Com ele perto do seu melhor, a dupla de asas que formará com o capitão Michael Hooper dará um enorme impulso aos Wallabies.
Comparando-a com os principais rivais, a seleção australiana vem mostrando encontrar-se num patamar abaixo (vide o comportamento das suas franquias nos últimos Super Rugby). Mas num bom dia e se conseguir replicar exibições como a conseguida na recente vitória por 47-26 frente à Nova Zelândia, poderemos ter de novo os "cangurus" a fazer história.
Depois de serem segundas no Pacific Nations Cup deste ano atrás do Japão, as Fiji serão como sempre um perigoso outsider, sempre capaz do melhor e do pior. Recheadas de jovens talentos e com figuras que alinham nos principais clubes europeus como Mata, Radradra ou Tuisova, poderão causar uma surpresa. E convém recordar o triunfo por 21-14 em Paris, no ano passado, que chocou toda a França...
A Geórgia é conhecida pelo poder físico do seu tremendo pack capaz de transtornar mesmo equipas de topo, obrigadas a encontrar um plano que minimize danos nas mêlées. Neste ano os georgianos dizimaram a Rússia no European Championship, conquistando 12 faltas, incluindo um ensaio de penalidade, um recorde entre equipas de top 20 mundial desde as novas leis da mêlée introduzidas em 2013. Qualificados diretamente para o Mundial e há largos meses à frente da Itália no ranking, os homens de Milton Haig quererão fazer nova prova de vida para a há muito desejada entrada no Seis Nações.
Uruguai foi arrasado pelas Fiji em novembro passado (68-7) e seria um milagre não ficar no último lugar do grupo. Em 2015 perdeu perante Austrália, Gales, Inglaterra e Fiji, sempre por mais de 30 pontos. Neste ano dificilmente será diferente.