O multilateralismo

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Talvez sem teorização prévia, os efeitos do globalismo, sintomas de uma estrutura ainda mal conhecida, conduziram à prática das solidariedades não globais, mas regionais, de complexidade variável, sendo a União Europeia a mais complexa, ao mesmo tempo que a NATO tende para debilitar as interdependências, se foram passadas aos factos algumas declarações do inesperado presidente dos EUA. Não seria inútil, para moderar o primeiro impacto, de raiz empresarial, que o animou, lembrar que o poder mais importante do mundo em que vivemos, o dos EUA, não tem saído facilmente vencedor dos conflitos em que teve intervenção depois do fim da Guerra Fria.

Outras frentes, designadamente a financeira, parecem estar a crescer de atenção, porque, como nota Moniz Bandeira, "a doutrina das fronteiras ideológicas refletiu a tendência para a internacionalização da política, ao exprimir e racionalizar os interesses do ultra-imperialismo, geridos predominantemente pelos Estados Unidos, cujos capitais, desbordando os estreitos limites dos Estados nacionais, espraiam-se por todo o sistema capitalista". Aquilo que foi chamado o Grande Jogo do Século XIX na disputa pela predominância na Ásia Central, e que continuou no século passado, com recurso tão discreto quanto impossível a ajudas discretas militares, parece agora evolucionar para multilateralismos oligárquicos, a que dedicam atenção, e aviso, muitos investigadores como Peteleville, Badie, Dejammet e Devin, estudiosos da renovação da diplomacia.

É certo que as formas e objetivos do que genericamente chamamos multilateralismo dizem sobretudo respeito às relações conflituosas que atingem as agressões militares, mas o que parece um traço comum é que o exame atual da soberania torna evidente que exige um complexo de poderes, científicos, técnicos, financeiros, económicos, que não estão distribuídos com igualdade, e por isso o multilateralismo procura amenizar as insuficiências variáveis. São exemplos, além da vocacionada ONU para o globalismo, casos de criação plural de agrupamentos, como os já clássicos desse movimento, que são o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC), mas sobretudo os iniciados "grupos de contacto", como o IBAS (Índia, Brasil, África do Sul, desde 2003), BRICS (Brasil, Rússia, Índia, África do Sul, desde 2000), e o mais falado e discreto G8, ou G20.

Não se trata de agrupamentos, de passado numeroso, relacionados com conflitos e o fim deles, como é o frequente no caso das guerras, mas sim de enfrentar exigências duradoiras, sobretudo do futuro incerto quanto à definição, mas abrangentes quanto ao desafio visível. A descrição do universo destas organizações, que internamente não evitam sempre questões da hegemonia, é mais complexo, mas estas indicações são suficientes para apreender a importância crescente da estratégia, que aconselha a examinar, sobretudo, a frequência da pluralidade de pertenças de vários Estados, sobretudo quando, partindo da complexidade da soberania possuída neste século, não são ricos da quantidade de competências que a mesma exige.

É, designadamente, o caso de Portugal, que, pela debilidade em que se encontra, viu agravar-se a necessidade secular de apoio externo, que vai impondo a exigência da avaliação, em vista de manter a sua igual dignidade das nações, visto que os agrupamentos, como a União Europeia demonstra, não escapam à políticas internas de hegemonias. Mas a pertença múltipla, a partir da ONU e suas organizações complementares, como são a CPLP, o Instituto Internacional da Língua, e até a Repartição Internacional do Trabalho, podem ser lembrados. E, finalmente, a questão grave, que é a pendência com a Espanha sobre o risco que representa a instalação nuclear de Almaraz.

Há mais seguramente de uma década, sendo já evidente o risco para Portugal, numa das reuniões das delegações dos Parlamentos de Portugal e de Espanha, que então eram prática estabelecida, foi pela delegação portuguesa proposto que passasse a ser internacional a gestão global dos rios transfronteiriços, partindo da experiência já antiga do Danúbio e do Reno. Então tratava-se não apenas dos riscos já previstos das instalações atómicas, mas também da discutida geopolítica espanhola dos "transvases". É talvez oportuno negociar pluralmente o alargamento da doutrina antes que os factos a dispensem, e a cortesia diplomática sirva apenas para alimentar a desatenção dos eventuais prejudicados. Este problema é suficientemente mais abrangente do que a atual situação entre Portugal e Espanha, parecendo que não possa estranhar-se ser levantada em termos de multilateralismo.

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