O momento em que começa a mudança
Esperança, quando tantos desesperam, é o que veio reacender a escolha de António Guterres para secretário-geral da ONU. É o que perpassa nas mensagens de júbilo que chegam de amigos, colegas, funcionários, jornalistas, peritos e ativistas com quem me articulei algum dia na ONU e fora dela. Esperança numas Nações Unidas reforçadas, mais eficazes a intervir contra quem fomenta guerras, pela segurança global, pela resolução dos conflitos, pela regulação económica, pela justiça social, pelo desenvolvimento sustentável, pelos direitos humanos, pelo direito internacional.
O militante número 127 do PS, ex-primeiro-ministro de Portugal, ex-presidente da Internacional Socialista e ex-alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, invulgarmente dotado em inteligência, bom coração, mas também sangue-frio, foi ao longo do seu percurso pessoal e político, nacional, europeu e internacional, aperfeiçoando excecionais capacidades diplomáticas, competências negociais e profundo conhecimento da máquina onusiana e dos vários terrenos em que opera.
Tudo isso contou e foi reconhecido na aclamação pelo Conselho de Segurança, num processo de seleção sem precedentes, o mais aberto e escrutinado jamais consentido pelos cinco membros permanentes na procura de um secretário-geral. Mas o mais decisivo e singular trunfo que fez António Guterres ganhar todas as rondas de votação e ultrapassar os "obstáculos" de não ser mulher (que ironia!), nem europeu de Leste, foi a ambição transformativa e estratégica que se propõe devolver à ONU.
Num tempo de sobrepostas e devastadoras conflitualidades, mas também de extraordinárias oportunidades, multilateralismo eficaz e cooperação global só a ONU os pode engendrar e legitimar (quais G7, G8, G20, etc... sem qualquer força moral ou vinculativa...). Mas a ONU, manifestamente, não corresponde: não está capaz de corresponder, por responsabilidade principal dos membros que há anos inviabilizam a sua reforma, a começar pela mais premente, a do Conselho de Segurança - paralisado pelo veto, a deixar a humanidade afundar-se na destruição criminosa e despudorada de crianças e outros civis inocentes na Síria.
Pode qualquer secretário-geral, neste tão conturbado e voraz tempo, fazer a diferença, ainda por cima contra P5 fragilizados, logo mais encarniçados na defesa de indefensáveis prerrogativas?
António Guterres pode fazer essa diferença. Porque se bate por valores, tem faro estratégico e não lhe falta coragem política (desde logo, a de verdadeiro europeísta, criticando a Europa, esta Europa...). Porque se deve sentir reforçado na legitimidade - e na responsabilidade - como secretário-geral, depois do processo transparente a que se submeteu. Porque o pode retirar do concerto dos P5, como reconheceu a embaixadora americana Samantha Power quando se referiu ao zeitgeist da Assembleia Geral ("more scrutiny of more individuals than we"ve ever had in the history of the SG race. A much more transparent process where, I think, the General Assembly"s will and the kind of zeitgeist out of the General Assembly"s sessions actually translated also into results in the many straw polls that led up to today").
O zeitgeist do órgão mais representativo da humanidade não pode ficar-se só pela lisura do processo, tem de produzir resultados. Não é num momento que se muda o mundo, mas há um momento em que começa a mudança. É quando se reacende a esperança: a mudança começou quando o mundo conseguiu pôr-se de acordo sobre António Guterres como o melhor para secretário-geral da ONU.
Embaixadora de Portugal e eurodeputada do PS