O mito de Evita está vivo, mas valerá ainda votos?
Dar um passeio por Boca para ver as fachadas coloridas do bairro onde Maradona fez a ascensão para o estrelato futebolístico e onde não faltava numa varanda um boneco do Papa Francisco. Tirar uma selfie com Mafalda, a miúda idealista e mordaz saída da imaginação de Quino e imortalizada de vestido verde num banco de rua. Ou fazer uma outra fotografia com a estátua de Maradona no jardim frente ao Cemitério da Recoleta, com os turistas, na época, a preferirem El Pibe ao Messi a seu lado, então ainda sem um Mundial no currículo para atrair os fãs. São muitos os encantos de Buenos Aires que o turista europeu não pode deixar de visitar. Mas naquele verão de 2014 - inverno por aquelas bandas do hemisfério sul - houve mais duas atrações inevitáveis naquelas férias em família: as casas-museu de Carlos Gardel e de Evita Perón.
Gardel e Evita, dois mitos trágicos desta Argentina agora nas notícias por ir escolher novo presidente este domingo. Ele é a grande voz do tango, fruto do cosmopolitismo desta "Paris da América do Sul", que o mistério acompanhou desde o nascimento - reza a história que terá sido em França, mas o Uruguai não desiste de o reclamar como seu, mesmo se foi na Argentina que cresceu e se tornou famoso - até à morte, aos 44 anos, na queda da avioneta que o levava a um concerto na Colômbia. Ela, a menina pobre nascida Eva Duarte, a atriz que casou com Juan Perón, o general que foi o político mais poderoso da Argentina no século XX, e se tornou heroína dos descamisados.
Ora se Gardel ainda pode ser disputado por outros, Evita é a Argentina 100%. Na sua casa-museu no Bairro de Palermo, onde viveu com a família, ficamos mergulhamos na sua vida através de objetos pessoais, lembranças familiares, vídeos, como o do seu impressionante funeral, e, claro, os vestidos. Dona de um carisma em tudo contrário à sua diminuta estatura, Evita teve ainda tempo, antes de morrer, aos 33 anos, de garantir o direito de voto às mulheres e de encantar líderes estrangeiros, mesmo um cinzentão Salazar que a recebeu ao lado do Presidente Óscar Carmona para um banquete no Palácio de Belém, como mostram as fotografias no arquivo do DN.
Mas é a sua luta em defesa dos mais pobres a herança que o peronismo reivindica até hoje. Fenómeno muito argentino, dificilmente definível como de esquerda ou de direita, ainda hoje a força dos seguidores de Perón é tal que conseguiu que Sergio Massa passasse à segunda volta destas presidenciais, apesar de ser o ministro da Economia de um Governo incapaz de controlar a inflação. Pela frente tem Javier Milei, um populista cuja ideologia se poderia definir como anti-peronista e ainda mais além. Um homem que apesar das patilhas à Carlos Menem é tudo menos nacionalista - basta pensar que a sua heroína política é Margaret Thatcher, a primeira-ministra britânica que derrotou a Argentina na Guerra das Falkland/Malvinas. "Trump diz: "Make America great again". Bolsonaro diz "Brasil por cima de todos". Milei diz: "Viva a liberdade, carajo". Não diz Argentina. Não é um nacionalista", explicava há dias em entrevista ao DN o académico argentino Andrés Malamud.
No domingo cabe aos argentinos decidir se preferem o conforto do velho peronismo, mesmo com todos os seus vícios, ou a incerteza de um país entregue às mãos de Milei.
E Evita? O mito continua bem vivo - afinal ainda há dias, no concerto que deu em Lisboa, ouvi Madonna presentear a audiência com uma interpretação de Don"t Cry for Me Argentina, voltando por momentos a vestir a pele da heroína que interpretou no musical de 1996. Mas valerá em Buenos Aires, Rosário ou Córdoba os votos que Massa tanto precisa?
Editora executiva do Diário de Notícias