O mito das "costas voltadas"

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Os clichés são difíceis de apagar. Ainda há quem continue a acreditar no mito das costas voltadas entre espanhóis e portugueses. Os clichés e os mitos servem apenas para ocultar e mascarar a realidade. Na minha opinião foi uma invenção do salazarismo porque se queria reforçar uma identidade e Castela tinha sido, em tempos, a ameaça e a barreira para a Europa. Era preciso encontrar um vizinho indiferente e hostil.

Entretanto, os espanhóis e os portugueses eram amigos e visitavam-se. Não foi apenas o Estoril com a sua realeza, com D. Juan de Borbón e o seu filho Juan Carlos, nem foi apenas José María Gil Robles, o dirigente da CEDA (Confederação Espanhola de Direitas Autónomas) que Franco não queria, e muitos mais, dessas direitas ilustradas, como Sainz de Robles e tantos monárquicos e liberais. Foram também muitos escritores e poetas, desde Torga, Eugénio de Andrade ou José Cardoso Pires até Álvaro Cunqueiro ou Ángel Crespo - que nos trouxe Pessoa, a nós os espanhóis - sem esquecer o inefável Fernando Assis Pacheco que conhecia melhor Espanha do que os próprios espanhóis.

Noutros lugares, o povo unia-se e juntava-se. A Raia era um meio de se encontrarem mais do que uma barreira. O contrabando recíproco de café, tabaco e até de pão, era também contrabando de corações, com muitos casamentos entre os naturais de ambos os lados. Isso está contado num pequeno romance que descreve perfeitamente o que aconteceu durante todo o pós-guerra - Estraperlo - de Expedi Vázquez.

Muitos espanhóis não sabem que após a Restauração em 1640 a guerra continuou por 25 anos, até à batalha de Montes Claros em 1655 que deu a vitória definitiva aos portugueses. Depois seguiu-se, efetivamente, um longo período de frieza que só começou a derreter depois da Guerra Peninsular. No séc. XIX começa uma aproximação cultural e política que já não é interrompida apesar de não ter mantido sempre o mesmo ritmo. As nossas histórias continuaram muito paralelas, com os miguelistas aqui e os carlistas em Espanha, com o mapa cor-de-rosa aqui e o 98 em Espanha.

Depois, nos tempos das ditaduras, era natural e lógico que os nossos escritores e artistas, mesmo que se conhecessem, olhassem para além dos Pirenéus. Olhar para os nossos vizinhos era como olharmo-nos ao espelho, ficarmos deprimidos. Em ambos os países existiam governos repressores, com censura, com a prisão e o exílio como única solução, e umas burguesias assustadas com o comunismo, o que os fazia aceitar, às vezes com relutância, Salazar e Franco como um mal menor.

Assinalemos dois momentos decisivos nas nossas relações: o primeiro, em 1974, o segundo, em 1986. A partir do dia 25 de Abril, nós, espanhóis, passamos do afeto por Portugal à admiração. Adiantara-se-nos para recuperar a democracia. E em 1986, os nossos sonhos europeístas confirmaram-se e os nossos caminhos convergiram para a consolidação da democracia e o avanço económico e social.

Em todos as sondagens em Espanha, durante décadas, Portugal e os portugueses apareceram sempre como os mais próximos e os mais apreciados. Somos muito diferentes e isso torna-nos interessantes e atrai-nos reciprocamente. Os espanhóis apreciam a calma portuguesa, a gentileza, a cortesia, a beleza das suas cidades e paisagens; os portugueses gostam da animação espanhola, do "ruído" e da vitalidade de muitas das nossas cidades. Se nós, espanhóis, somos incapazes de falar mais de dez palavras em português, é por causa de nossa inveterada dificuldade em falar bem línguas estrangeiras.

É verdade que ainda existem alguns traços de antiespanholismo, que vimos quando alguns intelectuais se declararam a favor dos separatistas catalães, evocando 1640 e o "imperialismo castelhano". Alguns até acusaram Espanha de não ser um Estado de direito. Parecia que as dificuldades do nosso governo os alegravam, uma espécie de schaudenfreude. Felizmente, penso que esta atitude é minoritária e residual, embora alguns meios de comunicação lhe tenham dado uma valorização excessiva que foi amarga para nós, especialmente para os que vivemos em Portugal; nós sentimos isso como uma injustiça e como uma falta de conhecimento da realidade. Com os seus preconceitos, mais do que as medidas - certas ou erradas - do governo espanhol, criticaram a Espanha como tal, como se desejassem alegremente a sua desunião.

Sempre houve um interesse recíproco entre os dois povos, embora seja verdade que foi mais intenso dos portugueses em relação a Espanha do que vice-versa. Pessoa, Saramago, Torga e muitos outros são bem conhecidos das classes educadas espanholas. Já são três os prémios de poesia atribuídos em Espanha a autores portugueses: Sophia, Nuno Júdice e Ana Luísa Amaral. Faltam-nos os Prémios Príncipe das Astúrias para os portugueses que o mereceriam sobejamente.

Em Madrid ainda há muito umbiguismo nas editoras, nas galerias de arte. Isto significa que tantos escritores e poetas portugueses atuais e passados ​​e, sobretudo, artistas não sejam mais conhecidos. Ainda penso que muitos espanhóis pouco ou nada sabem antes de virem a Lisboa sobre os Painéis de Nuno Gonçalves, e que os museus de Paula Rego, Helena Vieira da Silva e Júlio Pomar, ou Soares dos Reis no Porto, são relativamente pouco visitados.

Ainda há muito que fazer. É um escândalo que não tenhamos ferrovias - os desígnios da Renfe são inescrutáveis e lamentáveis -, devemos reforçar muito uma estratégia comum para a natureza e a água que seja mais sustentável e eficaz. Uma carta de Lisboa para Barcelona leva pelo menos uma semana, como antes da aviação. E falta o português como língua opcional nas escolas (menos na Estremadura).

O facto de notarmos essas lacunas a serem preenchidas é justamente a prova de que nos preocupamos com o que fazemos, e queremos trabalhar juntos e conhecermo-nos melhor. Estamos a avançar, estamos no caminho certo.


Escritor espanhol residente em Portugal

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