O mistério do dólar e os desequilíbrios mundiais
Na semana passada, o dólar desceu. Mas nada garante estarmos no início da forte baixa da divisa americana que, desde há anos, muitas pessoas (entre as quais me incluo) andam a prever.
De 2002 a 2005 o dólar desceu mais de 20% em relação ao euro e a outras divisas. Mas a descida não continuou. Aliás, em relação a um conjunto de moedas representativas dos principais parceiros económicos dos Estados Unidos, o dólar subiu 4% no ano passado.
Ora o défice externo dos EUA já é muito grande (7% do PIB). As suas importações são 60% superiores às exportações. Atenuar o desequilíbrio da balança comercial americana exige um dólar menos valorizado, para tornar mais atractivas as exportações dos EUA. Mas nem o dólar desvalorizou o que seria de esperar face ao défice externo americano, nem as autorida- des de Washington parecem preocupar-se com o caso.
Pelo contrário, a poupança do Estado federal americano, substancial no tempo de Clinton na Casa Branca, tornou-se altamente negativa com George W. Bush e os seus cortes nos impostos. E ao défice das contas federais soma-se a queda da poupança das famílias americanas, hoje praticamente nula.
Assim, o país que detém a mais importante divisa de reserva do mundo é agora o maior devedor líquido mundial. É inédito: quando a libra esterlina dominava, o Reino Unido era um grande exportador de capitais. Aliás, ainda há 30 anos os EUA eram um credor líquido internacional. Hoje, o país mais poderoso do mundo absorve três quartos da poupança líquida mundial. Eis os pobres a financiar os ricos.
Como explicar isto? Em primeiro lugar, pela atracção que a economia americana exerce sobre investidores de todo o mundo. Ninguém prevê que possam acontecer nos EUA revolu- ções políticas nem nacionalizações. E é notável o dinamismo económico americano nos últimos 15 anos, com espectaculares ganhos de produtividade, graças sobretudo à utilização extensiva das tecnologias de informação. Daí a entrada de muito dinheiro para comprar títulos america-nos e para investimentos directos em empresas.
É certo que há cinco anos os investidores privados internacionais arrefeceram o seu entusiasmo em aplicações nos EUA. Foi a partir do estoiro da bolha especulativa na Bolsa em torno das novas tecnologias. A cotação do dólar desceu desde então e o seu papel como divisa internacional de reserva diminuiu. Mas, repito, não foi a queda acentuada que muitos previam.
Aconteceu que vários bancos centrais asiáticos - da China, Japão, Coreia do Sul e outros - desataram a comprar títulos do Estado americano (quase metade desses títulos está hoje na mão de estrangeiros), travando a queda do dólar. Em 2003, os bancos centrais, principalmente asiáticos, financiaram quatro quintos do défice externo dos EUA.
Porquê? Para se precaverem contra tempestades cambiais, como a que atingiu a Ásia no final dos anos 90. E sobretudo para, comprando dólares, evitarem a valorização das suas pró-prias moedas e assim manterem competitivas as exportações, motor do seu crescimento económico.
Só que este jogo arriscado não pode prolongar-se indefinidamente. Uma maior queda do dólar trará aos bancos centrais asiáticos enormes perdas - quanto mais títulos em dólares detiverem, maior será o seu prejuízo.
Por outro lado, os EUA têm feito grande pressão para os asiáticos, em particular a China, revalorizarem as suas divisas. Ora tal implica que os bancos centrais asiáticos deixem de comprar títulos em dólares e a divisa americana baixe significativamente...
No fim de Março, Ben Bernanke, o novo presidente da Reserva Federal, subiu a taxa de juro pela 15.ª vez sucessiva, por razões internas (travar a inflação). Juros altos nos EUA tendem a fortalecer o dólar, não a desvalorizá-lo.
Contraditório? Bernanke acha que cabe aos países com grandes excedentes na sua balança comercial corrigirem este desequilíbrio, deixando subir as suas divisas. E que compete às economias europeias e asiáticas crescerem mais, retendo assim boa parte dos fundos que têm emigrado para os EUA.
É verdade. Mas as autoridades americanas deviam assumir as suas responsabilidades de grande potência económica e monetária mundial, desde logo reduzindo o défice das suas contas públicas.
Só que acusações recíprocas sobre a culpa deste desequilíbrio internacional não resolvem o problema. Entretanto, o desequilíbrio continua a crescer, acumulando riscos sérios para a economia mundial.