O milagre da Síria: um país em ruínas a dois passos do Mundial

Seleção apurou-se para o penúltimo play-off de acesso ao Rússia 2018. "Tudo o que têm feito é fantástico", diz Rui Almeida, técnico que lançou a geração quase desfeita pela guerra civil
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"É uma história incrível": a forma como o futebol resiste, num país dilacerado pela guerra civil entre o regime do presidente Bashar al-Assad, as forças rebeldes e o autointitulado Estado Islâmico, surpreendente até quem lá trabalhou, como o treinador Rui Almeida. O milagre é real (mesmo que os aplausos não sejam unânimes): a seleção de uma Síria em ruínas está a dois passos (leia-se "dois play-off"s de alta dificuldade") de se qualificar para o Mundial 2018.

O último episódio do conto de fadas aconteceu anteontem, na visita ao Irão: Omar Al-Somah marcou, em cima dos 90", fazendo o 2-2, suficiente para os sírios se apurarem para a derradeira eliminatória asiática de acesso ao Rússia 2018. Com Irão, Coreia do Sul (dois primeiros do Grupo A), Japão e Arábia Saudita (do B) diretamente qualificados, Síria (3.ª do A) e Austrália (3.ª do B) vão decidir entre si quem vai ao play-off intercontinental, contra o 4.º da América do Norte e Central - posição atualmente ocupada pelos Estados Unidos (abrindo a hipótese de um duelo geopolítico de alto risco).

O jogo entre australianos (estiveram nos três últimos mundiais e são campeões asiáticos [estão filiados no continente vizinho desde 2006]) e sírios (nunca foram ao Campeonato do Mundo nem passaram além da fase de grupos na Taça das Nações Asiáticas), agendado para 5 e 10 de outubro, parece desequilibrada. Ainda mais, se se tiver em conta que os sírios não terão fator-casa - jogam em campo neutro (no Irão, na Jordânia ou na Malásia) desde o início da guerra civil, em 2011. Mas, na verdade, nenhuma dificuldade os tem impedido de prosseguirem uma caminhada histórica, que já vai em 18 jogos das duas fases de grupos da qualificação (o seu melhor percurso de sempre).

"Tudo o que eles têm feito é fantástico. Chegarem a esta fase, deixando pelo caminho equipas como o Uzbequistão e o Qatar, e sabendo-se como é a situação política e social no país, surpreendeu toda a gente", afirma, ao DN, Rui Almeida, treinador português que dirigiu a seleção olímpica da Síria, entre 2010 e 2012. "É tudo fruto da qualidade dos jogadores e do seu querer e ambição. Transformaram as dificuldades em motivação para chegarem longe", acrescenta.

Na verdade, até o técnico (que deixou a Síria em março de 2012 e na época passada comandou o Bastia, da Ligue 1 francesa) ficou algo surpreso com o desempenho da seleção, parcialmente composta por jogadores que treinou e com quem ainda mantém contacto esporádico. A geração que lançou (e esteve perto do apuramento para Londres 2012) foi quase desfeita pela guerra civil, que já matou mais de 320 mil pessoas e levou à fuga de grande parte da população do país.

Alguns futebolistas alistaram-se nos grupos rebeldes. Outros fugiram do país (e criaram equipas nacionais alternativa, exigindo o reconhecimento da FIFA). E pelo menos 38 morreram no conflito - a maioria às mãos das forças governamentais -, segundo contas da ESPN.

A seleção é vista como um instrumento de propaganda de Assad, estando longe de recolher a admiração unânime do povo sírio. "O regime está a usar o amor que os sírios tem pela seleção para se promover", reclama Tareq, refugiado no Líbano, citado no The Guardian.

No entanto, agora, até os futebolistas opositores de Assad preferem deixar a política fora dos relvados. Após cinco anos de exílio, Firas al-Khatib voltou à Síria para capitanear a seleção nos últimos passos da fase de apuramento. "Todas as noites penso no que fazer. Qualquer que seja a decisão [voltar ou não], 12 milhões de pessoas vão adorar-me e outros 12 milhões vão querer matar-me", desabafou o avançado, no início do ano. Acabou por regressar, como Omar Al-Somah.

"A fratura no país é tão profunda que se sente na seleção. Mas, tendo em conta o regresso do capitão e de Somah, algo está a mudar. E, pelos jogadores que conheço, acredito que estão a fazer isto por eles, não pelo regime. É a Síria que está a jogar: não é Bashar al-Assad", regista Rui Almeida. "Estou muito feliz por eles, pelo que têm conseguido, após bastante sofrimento", diz ainda o treinador português.

Afinal, por entre os escombros da Síria, o edifício futebolístico continua de pé - a liga continua a ser disputada, embora apenas nos estádios Damasco e Lataquia (regiões sob controlo do regime). E os jogadores da seleção - muitos emigrados para outros campeonatos do Médio Oriente - vão tentar levar o milagre ainda mais longe.

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