O meu mariachi

Na semana passada fui a Madrid em trabalho e fui à boleia.
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Andar à boleia já não é trabalho para um polegar esticado nem para um cartaz com um destino escrito, por exemplo "Costa", da Caparica, bem entendido. Vai-se ao blablacar.com e lá estão uma série de boleias para os sítios onde queremos ir. É escolher das várias a que parecer melhor (tipo de carro, de companhia, avaliação do condutor) e pagar ( para Madrid, ida, paguei 33 euros). Trinta e três euros, melhor do que levar o carro, melhor do que o avião e o comboio. As boleias já não são borlas. É a economia da partilha, que é partilha mas também economia, agora no transporte interurbano de Lisboa a Leiria, do Porto a Braga. E de Lisboa a Madrid, passando por Badajoz.

O meu carro era conduzido por um mariachi. Mariachi como? Mariachi mariachi, daqueles que cantam, numa banda de mariachis com um sombrero na cabeça, cielito lindo. Tinha 50 anos, dois filhos. Vivia em França desde os 16, onde aterrou vindo do Equador, emprestado pelo pai a uma banda de música sul-americana. Emprestado como? Emprestado, tinha uma boa voz. Ah, OK. No banco de trás viajava um casal apaixonado, ela portuguesa, ele brasileiro. Ficaram em Badajoz, diziam que sempre tiveram curiosidade em conhecer Badajoz, no questions asked. Vinha mais uma rapariga, espanhola, trabalhadora em Lisboa, que ia fazer uma entrevista em Madrid. Simpática, mas com assuntos (issues) com a família, pelo menos a julgar pelas repreensões que ia dando à mãe sobre o modo como tratar as tias. Que não, que elas já deviam ter aprendido, que devia ter dito isto e aquilo, e que não pode ser sempre a mãe a preocupar-se com os problemas dos outros, que é sempre a mesma coisa.

O meu mariachi era um melómano, e a conversa foi muito à volta disso, músicas, instrumentos. Às tantas pediu-me que lhe traduzisse a letra de Seu Jorge Amiga da Minha Mulher, tema gostoso para abordar deserto da Extremadura a dentro, num carro com estranhos (Se fosse mulher feia tava tudo certo, mulher bonita mexe com meu coração). Chegados a Madrid, a espanhola dos assuntos de família e eu íamos ficar na mesma rua. O mariachi, experiente condutor de boleias da blablacar, disse que é muito comum coincidências destas, uma vez tinha dado boleia a uma rapariga, de Espanha para França, e viviam na mesma rua ela e ele. Coisas que se ficam a saber. Saí do carro, rim esquerdo check, rim direito check, que isto das boleias tem sempre um certo grau de risco nefrológico. Despedimo-nos os três. Nunca mais nos vamos ver.

Uma das vantagens da economia partilhada é a exposição aleatória ao outro. Aquelas oito horas com o meu mariachi foram mais ricas do que qualquer voo de oito horas. Lembrou-me de uma frase da Jane Jacobs no livro The Death and Life of Great American Cities (que recomendo muito muito): "Por natureza, a metrópolis dá-nos aquilo que de outro modo só é dado pela viagem: o estranho [the strange]". O estranho só é estranho na medida em que o possa vislumbrar, cheirar, de outro modo é coisa, parede, átomo. E nas boleias conhecemos o estranho que não deixa de o ser.

E se é na cidade onde eu encontro o estranho, por oposição à aldeia, à família, à casa, é dentro da cidade que eu encontro enclaves de estranheza. Em Lisboa, o enclave chama-se Feira Popular, uma orgia de portugalidade com sirenes de carrossel e cheiro a fartura. Chama-se, não, chamava-se. Os meus filhos já não sabem o que é a Feira Popular ou, no máximo, pensarão que é um supermercado de eletrónica (fusão entre o Feira Nova e a Rádio Popular).

A questão fundamental é como é que vivemos mais de 12 anos sem Feira Popular em Lisboa, como famílias, como cidade, como seres humanos. A câmara quis vender os terrenos da Feira Popular e ninguém apareceu para os comprar. Dizem que eram caros, ou que a burocracia era muito pesada, ou que o mix habitação serviços está desadequado ao mercado e à zona. Mas não, o que se passou foi que o monstro do comboio fantasma se vingou, aquele gorila que passava a mão pela cabeça mesmo no fim da viagem. Ensombrou aquilo tudo e agora não vai aparecer ninguém. Ou foi a bruxa da sina, que saiu da máquina. Mas se eu fosse o dono disto tudo sabia bem o que fazer com os terrenos da Feira Popular. Não era para lá meter uns grandes armazéns daqueles caros e com empregados licenciados, nem um prédio de linhas invivíveis, nem lojas convenientes, nem lojas inconvenientes, nem um hub de startups. Era para lá meter a Feira Popular. Não era um luna park à antiga tipo os de Coney Island ou do Prater (meu Deus, o Antes do Amanhecer faz este ano 20 anos), nem um parque de diversões género Hershey Park ou parque temático tipo Legoland. Era a mesma Feira Popular, com os póneis tristes e anafados, as corridas de carros de fórmula um, com relato em direto, e a bola a passar nos buracos, no de cima ou no de baixo, o dragão, a casa dos espelhos com o cilindro a rolar à saída, a roda gigante. E o Poço da Morte, Joselito seu pai morreu nesse número, os trens de panelas, os carrinhos de choque (se a ficha cor de laranja ficasse encravada era possível andar mais vezes, mas sem chocar muito, porque se se chocasse ela acabava por cair), o twister, os karts lá ao fundo junto à 5 de Outubro (para os mais velhos); as rifas, o restaurante Lobos do Mar, a grande exposição de móveis. Só mudava uma coisa, tirava o (infame) Café dos Pretos e abria uma taqueria onde o meu mariachi vinha cantar duas vezes por ano. À boleia.

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