O meu brinquedo e eu

Eles há muito que cresceram. Largaram os brinquedos, as birras, os jogos da infância. Mas há algumas dessas brincadeiras que sobreviveram ao passar do tempo, ao avançar dos anos. Houve brinquedos que eles guardaram. Porque eram especiais. Porque queriam mostrá-los aos filhos, aos netos. Porque queriam recordar. Porque há coisas que não são só coisas. São pedaços de história, de memória, de vida. Eles há muito que cresceram. Mas ainda hoje, quando pegam no seu brinquedo especial, há um brilho qualquer no olhar que parece transformá-los. De repente, perdem os apelidos. E passam a ser, simplesmente, a Isabel, o José Luís, o Carlos, o Marcelo e a Inês.<br /><br />
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Isabel Alçada
Escolhe não um mas três brinquedos. Ou melhor, dois brinquedos e um livro. Isabel Alçada começa pelo livro. Les Malheurs de Sophie, ou Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur, foi o seu primeiro livro, mais do que lido, devorado, várias vezes. Tinha 7 anos quando o recebeu, na versão original. «Recebi-o quando andava na segunda classe, no Liceu Francês. Comecei a lê-lo e nunca mais parei. No final, estava orgulhosíssima de mim. Porque era um livro grosso, grande, de 150 páginas, em francês. E eu tinha-o lido, sozinha. Foi uma satisfação. Assim que terminei, voltei ao início.»
O que mais a encantou foram, justamente, os desastres, tantos desastres em que se metia aquela menina que se chamava Sofia, mas que podia perfeitamente chamar-se Isabel: «Ficava fascinada porque ela fazia coisas que me podiam ocorrer fazer. Não me esqueço de um episódio em que uns operários estavam a arranjar a casa dela e tinham um tabuleiro com cal. Tinham-lhe dito para não se aproximar mas, claro, a Sofia achou aquilo tão bonito, tão lisinho que não resistiu. Meteu um pé, o outro pé… e depois ficou aflita, aos gritos, com os pés a queimar. Aquilo impressionava-me muito! Porque era muito possível que eu também me lembrasse de experimentar a cal. Quem diz a cal diz outra coisa qualquer. Ver escrito num livro os disparates que eu podia fazer foi uma revelação.»
Isabel Alçada, uma das autoras da série de livros juvenis Uma Aventura, começava assim a sua viagem pela literatura. Com os desastres de uma menina que podia ser ela.
Além do livro, Isabel Alçada, 60 anos, ministra da Educação, tem na mão uma boneca e uns berlindes. A boneca chama-se… Sofia, em homenagem à Sofia dos desastres, essa inspiradora. O melhor da boneca não era pegar-lhe ao colo, pô-la a dormir, cantar-lhe cantigas de embalar. O melhor era poder vesti-la com os vestidos que a mãe fazia, com restinhos de tecidos. «Houve um Natal em que eu e as minhas duas irmãs recebemos o presente mais extraordinário e inesquecível. A nossa mãe tinha mandado fazer, em madeira, mobília de quarto para as nossas bonecas: cómoda, guarda-fatos, cama, mesas-de-cabeceira… mas o melhor dos melhores estava dentro do guarda-fatos. Vários vestidos feitos com tecidos iguais aos nossos! Como a nossa roupa era feita em casa, ela tinha guardado pedaços dos tecidos e tinha feito tudo igual. Ficámos doidas. Lembro-me que a Sofia passou a vestir um casaco de veludo côtelé igual ao meu. E uma camisola amarela com a gola preta, igualzinha à minha e às das minhas irmãs. Foi um sonho.»
Dir-se-ia que os berlindes destoam neste ramalhete composto por livros e bonecas janotas. Mas a verdade é que Isabel Alçada conseguia ser coquete e aventureira ao mesmo tempo. E jogar ao berlinde era uma das suas brincadeiras preferidas. «Adorava jogar ao berlinde! Lembro-me que na escola, assim que tocava, íamos a correr para os buracos que havia no chão, para jogar. Ah, sim, e andava de patins e de bicicleta e fazia ginástica e trepava às árvores. No meu quintal havia uma ameixoeira grande. E cada uma de nós tinha o seu poleiro. Eu gostava de demonstrar a minha habilidade, prendendo as pernas no ramo e ficando de cabeça para baixo. Um dia caí e parti o nariz. Mas no dia seguinte já lá estava outra vez… É por isso que tenho o nariz assim, torto.»
Ainda sobre os berlindes, uma nota. Foi por culpa deles que um dia Isabel Alçada e as irmãs jantaram na casa de banho, entre muitas lágrimas e soluços. Estavam a jogar ao berlinde no tapete da sala e começaram a chamar «batoteiras» umas às outras. O pai ouviu e, solene, avisou: «Não quero tornar a ouvir estes insultos. Quem não tem espírito desportivo não joga.» As meninas enfiaram a viola no saco mas por pouco tempo. Daí a nada já estavam de novo aos gritos: «Batoteira.» «Batoteira és tu.» O pai, que nunca lhes bateu, mas que sempre soube pô-las em sentido, ordenou então que cumprissem um castigo inusitado. Que fossem jantar para a casa de banho. Se não tinham maneiras, era lá que deviam ficar. As manas sentiram-se vexadas com o local da janta, consta que choraram como Madalenas, mas parece que aprenderam a lição. E ainda assim, apesar da punição, os berlindes merecem estar neste trio de brinquedos que marcaram a infância de Isabel Alçada.

José Luís Peixoto
A guitarra que tem na mão é um pedaço de mundo que se abriu na sua infância. Assim mesmo, sem tirar nem pôr. José Luís Peixoto, 35 anos, nasceu e cresceu em Galveias, uma aldeia de Portalegre onde não chegavam outros brinquedos que não fossem carrinhos e berlindes, peões e bonecos e pouco mais que isto. O resto era a imaginação e as corridas no campo com os amigos. Mas calhou que o escritor tivesse uma tia, irmã da mãe, que emigrou para Inglaterra. E calhou que essa tia tivesse duas filhas, suas primas direitas, que trabalhavam na British Airways e que, por causa disso, viajavam por esse mundo fora. Assim sendo, calhou que à infância de José Luís Peixoto tivessem ido parar brinquedos dos cinco continentes, coisas com as quais nunca tinha sequer sonhado, quanto mais desejado ter.
«Era um mundo muito diferente, esse que me chegava através dos brinquedos que me traziam. E a possibilidade de imaginar esse outro mundo através dos objectos, enriqueceu-me muito. Criou-me a curiosidade e despertou-me o sonho. No fundo, permitiu-me construir mundos pela imaginação, que é aquilo que eu hoje faço quando escrevo um livro. Se calhar, esses brinquedos que me chegavam, tão diferentes, foram determinantes para aquilo que eu hoje sou.»
Além dos brinquedos, o autor de Nenhum Olhar, Morreste-me ou Cemitério de Pianos recorda-se de ver as fotografias que lhe traziam desse outro mundo que existia para lá de Galveias. «Hong Kong, Havai, Estados Unidos da América… lembro-me de ver as fotografias e de imaginar como seria viver nesses lugares. E elas, a minha tia e as minhas primas, contavam sempre histórias que me pareciam incríveis. Era como se não fosse real, parecia uma fantasia, uma coisa mágica. Ficção.»
A guitarra que José Luís Peixoto guarda até hoje tinha quatro cordas (hoje já só tem duas) e faz parte desse mundo que se abriu na sua imaginação. «Houve outros brinquedos que se destacaram, como uma mesa de matraquilhos. Ninguém, em Galveias e arredores, tinha nada que se parecesse com isso. E os Legos? Também tive Legos antes de toda a gente e lembro-me de gostar muito, de ser maravilhosa a ideia subjacente da construção. O meu pai tinha uma carpintaria/serração. E desde sempre que vi entrarem troncos de árvores e saírem portas e janelas. O meu pai também me construía brinquedos em madeira e sempre me transmitiu estas noções basilares: edificar, construir, do nada fazer alguma coisa. Aprendi a sentir uma satisfação nisso, no trabalho, no esforço. O prazer que nasce do nosso trabalho, do nosso empenho.»
A guitarra tinha implícita, também, essa noção de esforço. Era preciso aprender a tocá-la para que dali não saísse apenas ruído. O escritor admite que não terão sido agradáveis os sons que produziu em miúdo, mas talvez tenha sido um pouco por culpa dela que aprendeu a tocar e, anos mais tarde, em plena adolescência, se tenha tornado guitarrista numa banda.
Os filhos, um de 13 anos, o outro com 5, também chegaram a brincar com ela. «Brincaram. Mas depois comprei uma para eles, para preservar esta. Não faço uma grande tragédia se perco algum objecto, mas ao mesmo tempo reconheço que existe aqui alguma história, alguma memória. Nesta guitarra existem emoções e experiências e aprendizagem. No fundo, ela não é um mero objecto. Ela representa aspectos da minha identidade, da pessoa que eu sou. E, por isso, gosto de a ter por cá.»

Carlos Monjardino
Um carrinho com peças de madeira para fazer construções. É este o brinquedo que Carlos Monjardino, 65 anos, apresenta, o brinquedo que perdurou até aos nossos dias. «Tenho outros. Tenho uns Dinky Toys, uns carrinhos de guerra, mas como sou pouco bélico achei que não fazia sentido mostrá-los. Também tenho dois carros muito engraçados, um é uma reprodução do carro do Hitler (mas esse, então, ficava mesmo mal trazer para aqui), e o outro é um Fiat Topolino, que é a reprodução do primeiro carro que a minha mãe teve quando aprendeu a guiar. Mas enfim. Achei que estes blocos de madeira, que eram os Legos da altura, têm mais a ver comigo.»
Têm mesmo. Construir tem sido a sua vida, com uma carreira brilhante na banca, a criação da Fundação Oriente, mais a gestão de outras duas Fundações (Stanley Ho e Fundação Monjardino), os 12 filhos, e um sem-número de outras edificações que se lhe conhecem.
«Devia ter uns 3 anos quando recebi este presente. Acho que foram os meus pais que me deram no Natal, ou melhor… foi o Pai Natal. Lembro-me de brincar com isto, lembro-me de andar com um cordel sempre atrás de mim, a puxar o carrinho de madeira com as peças em cima. Com os vários filhos e netos que tenho, como é que isto durou até hoje é que eu já não sei.»
Porque houve outros brinquedos que levaram sumiço e isso é coisa que o deixa irritado: «São catrefadas de filhos e eles mexem nas coisas e depois, claro, parte-se isto, estraga-se aquilo. Desapareceram-me uma série de Dinky Toys, a um velho Constelation já lhe falta uma asa… A minha casa é uma espécie de museu de coisas que têm que ver com a minha vida. Dificilmente me encontro no meio daquilo tudo. No outro dia, andava por lá à procura não sei de quê, descobri a minha primeira pressão de ar. Uma Diana. Fiquei satisfeitíssimo. Mandei-a arranjar e ficou impecável. O que fazia com ela? Ia aos pardais, como qualquer rapaz que se prezasse! Outro dia, também encontrei o meu último stick de hóquei em patins, quando jogava no Sporting. Um stick italiano! Fiquei todo contente. Gosto de guardar as coisas. Guardo tudo. Até guardo de mais.»
Até aos 16 anos, Carlos Monjardino viveu numa espécie de clausura. Uma boa clausura. Vivia numa casa, com um hectare de terreno, em plena Lisboa. Mas quando se diz plena, é mesmo em plena Lisboa. Uma quinta na Avenida Praia da Vitória, com galinhas, patos, cabras e tudo. «Era tão grande que produzíamos azeite. Tínhamos oliveiras suficientes para produzir azeite.» E foi logo ali, na infância, que o avô Pulido Valente se sossegou quanto ao futuro do neto: «Fazia uns negócios entre as minhas avós e ele percebeu que mesmo que eu não fosse um aluno brilhante tinha a vida assegurada. A minha avó Monjardino vivia num andar, não tinha galinhas nem ovos. Então, pedia à minha avó Pulido Valente que me desse os perus e eu ia vendê-los à outra avó. E o mesmo com os ovos. Tinha uns 8 ou 9 anos.»
Aquela quinta era o seu mundo. «Levava para lá os meus amigos, é certo, mas estava naquela redoma dourada. Era ali que brincava. Com os carrinhos, jogava à bola, andava de bicicleta – tinha circuitos, lá dentro – andava de patins e aproveitava uma rampa inclinada, que a casa tinha, para deslizar com os meus carrinhos de rolamentos.»
Parece não jogar a bota com a perdigota, imaginar Carlos Monjardino montado num carrinho de rolamentos, brincadeira associada a meninos de outra classe. O homem do Oriente nega o estereótipo: «Ui, se eu gostava daquilo! Eu próprio construía os carrinhos [lá está, construção, de novo] e mandava-me naquela rampa a alta velocidade!»
Os tempos de clausura dourada já lá vão, Monjardino largou os carrinhos de rolamentos e dedicou-se a outro tipo de viaturas (na sua colecção existe um Maseratti, Ferrari, Porsche, Bentley, MG, Lotus, etc.). Ainda assim, o passado está um pouco por toda a casa e um dos seus prazeres é revisitá-lo: «Gosto. Gosto de encontrar partes da minha história. Não fico nostálgico nem melancólico. Fico feliz sempre que encontro qualquer coisa da infância ou da adolescência, porque me permite recordar.»

Marcelo Rebelo de Sousa
Quando casaram, Baltasar Rebelo de Sousa e Maria das Neves não tinham muito dinheiro. Ele era estudante de Medicina, ela assistente social, de modo que foram viver para uma cave na Avenida Almirante Reis e foi aí, nessa casa modesta, que nasceu Marcelo Rebelo de Sousa, o ilustre professor. Depois, o pai tornou-se médico e dirigente do Estado Novo, a mãe continuou assistente social até deixar o emprego para se dedicar aos filhos, e a evolução da família traduziu-se numa evolução geográfica e ascendente, no verdadeiro sentido da palavra: da cave na Almirante Reis passaram para uma cave na Lapa, depois para um 1.º andar, e por fim acabaram a viver num duplex, 1.º e 2.º andares, no mesmo bairro chique de Lisboa.
Serve o intróito para dizer que durante alguns anos da infância Marcelo não teve os brinquedos todos que quis, nem pouco mais ou menos, mas como foi muito cedo para a escola (porque os pais estavam ambos a trabalhar) teve a oportunidade de começar precocemente a socializar com outras crianças. «Jogava à bola e à carica. Também havia o berlinde mas eu preferia a carica. Primeiro porque os berlindes eram caros. Depois porque os melhores eram “fanáveis”, e era um desconsolo ficar sem eles.»
Entretanto nasceu-lhe o primeiro irmão, António, depois o segundo, Pedro, e era uma alegria jogar à bola em casa, com o pai a alinhar nas partidas diárias. Também gostavam de jogar básquete, e o «cesto» ficava entre a parede e o varão dos cortinados.
Como a mãe era assistente social (e mesmo quando deixou de ser continuou a incomodar-se com os desequilíbrios sociais), achava que o excesso de presentes no Natal era um escândalo. «Por isso, nós recebíamos os presentes no Natal, brincávamos um tempo com eles, e depois os presentes iam desaparecendo. Em 15 dias tinham sumido. Eram devidamente empacotados e guardados, e serviam para mais tarde, para o ano seguinte, para o aniversário. De resto, acho que ela nos ofereceu o mesmo carro de bombeiros duas ou três vezes.»
Por causa desse rigor, e do hábito de se guardar tudo direitinho dentro das embalagens, chegou até hoje uma caixa de Meccanos, que Marcelo exibe, orgulhoso. Já lhe faltam algumas peças mas está quase tudo impecável. «Achava que tinha jeito para fazer estas construções. Montava, desmontava… tinha muita paciência.» E ainda tem. Quando posa para o retrato, desmoronam-se os Meccanos, que teimam em não se segurar por culpa de uma peça que se perdeu. E o professor, perseverante, sempre sem desarmar, prossegue na construção como se aquelas peças coloridas nunca tivessem deixado de fazer parte do seu dia-a-dia.
Voltando ao passado: se em casa de Marcelo Rebelo de Sousa havia um controlo espartano dos brinquedos, o mesmo não se podia dizer do que se passava em casa do seu melhor amigo. Carlos Pires era o «amigo rico». Tinha tudo. E Marcelo pôde usufruir desse mundo, na altura tão distante do seu. «Vivia num palacete com jardim na rua Rodrigo da Fonseca, tinha outra casa no Estoril, onde eu ia passar férias, no Verão. A mãe dele organizava peças de teatro, marionetas… Era uma artista. Fumava, conduzia um Cadilac e levava umas 15 crianças à praia. O banheiro dava-nos aqueles mergulhos tapando o nariz, comíamos batatas fritas e barquilhos. Passeávamos num carro puxado a cavalos, almoçávamos no alpendre de casa, bife com ovo a cavalo, trazido pelas funcionárias… O meu amigo tinha a colecção inteira dos Dinky Toys e todos os brinquedos que se possa imaginar. E a mãe dele tinha uma biblioteca formidável, com todos os livros da Agatha Christie, toda a colecção de Júlio Verne, uma loucura. Às vezes, quando iam para fora, deixavam-me ir para lá, ler todos os livros que quisesse. Enfim. Continuo a dizer que mil vezes melhor que ser rico é ter amigos ricos. E eu tive. E assim pude brincar com coisas que de outro modo não teria sido possível.»

Inês Pedrosa
Lembra-se perfeitamente de si em miniatura, sentada junto a uma janela da casa onde viveu, com um livro nas mãos. Talvez seja essa a imagem mais marcada da sua infância. «Lia muito, sempre li muito. E sempre gostei de ler livros bem escritos. Percebi, desde cedo, se estavam bem escritos ou não. Quando não estavam era mais fácil aborrecer-me deles.»
De bonecas também gostava mas a essas foi perdendo o rasto com o correr dos anos. «A minha filha nunca gostou de bonecas, e por isso fui dando todas. Havia uma Cindy que desejei muito ter. Demorei um ano a recebê-la, porque no meu tempo recebia um presente nos anos e mais nada. No Natal pedia dinheiro a toda a gente. O meu maior prazer pós-natalício era pegar no dinheiro todo que tinha recebido e ir às livrarias do Chiado comprar livros.»
Eram, então, os livros, o seu maior prazer. Talvez o primeiro de todos, ou pelo menos o primeiro que lhe ficou na memória tenha sido A Velha Árvore, de Pearl Buck. Inês teria uns 6 anos e aquele livro, com muitas histórias e com ilustrações de Marcel Marlier (o ilustrador que desenhou os livros da Anita), foi a sua companhia durante vários dias. «Havia uma história de Natal que me encantou particularmente, de uns ratos que tinham fome… Nessa altura eu ainda gostava de ratos.»
Depois, de A Velha Árvore, aquele que mais a marcou foi A Princesinha, de Frances Burnett. «Devia ter uns 7 anos, foi uma prima da minha mãe que me deu.» Uma história de uma menina muito rica, que vivia num colégio inglês enquanto o pai trabalhava na Índia. Um dia o pai morreu e a menina, que até então era tratada como uma princesinha, viu-se em apuros. Sem dinheiro, a sua vida mudou radicalmente: «A directora faz dela criada, põe-na a dormir numa mansarda lúgubre, e a menina tem de ser muito corajosa. É a força da imaginação que a ajuda a suportar tudo. “Faz de conta que não tenho frio; faz de conta que não tenho fome” e é assim que ela vai aguentando aquela desgraça toda, inclusive o facto de ficar sem amigas, que se afastam dela mal sabem que ficou pobre.»
No final, porém, tudo acaba bem. «O pai tinha morrido mas tinha deixado uma grande fortuna. E um senhor muito rico, que vivia em frente ao colégio, protege a menina e acaba por ficar com ela. Acho que a directora também acaba despedida, como tinha de ser…»
Inês gostava de finais felizes. Não era ainda como os adultos, gente que tem a mania das calamidades. Quem o diz é a filha da escritora, Laura, de 12 anos. Sempre que vê a sinopse de um romance exclama, desgostosa: «Vê-se logo que é para adultos. Só acontecem desgraças. Será que vocês não sabem ser felizes?» Inês acha graça à constatação da filha. «Acho que todas as crianças gostam de finais felizes. Eu também. Mas gostava de livros onde existisse uma certa crítica social.» Como o inesquecível O Rapaz de Bronze, de Sophia de Mello Breyner. «Além da história da paixão da menina pelo rapaz de bronze, que me fascinou porque já o li com 9 anos e a relação entre rapazes e raparigas já me interessava, também havia a crítica à vaidade, à futilidade, com a descrição das senhoras que se acham muito importantes só porque estão radiosamente vestidas mas que depois não têm interesse nenhum, não valem nada. Essa crítica agradava-me.»
Estão gastos, os livros de Inês Pedrosa. E sublinhados, coisa que sempre fez. «Aqui, neste livro, sublinhei, por exemplo, esta frase: “O céu refrescado é uma aguarela.” Havia frases que achava bonitas e sublinhava. Sempre gostei do som das palavras. De resto, lembro-me muito bem de comprar livros por achar que os títulos eram bonitos. Houve dois da Hélia Correia que comprei assim. O Separar das Águas e Retrato de um Amigo Enquanto Falo. Achei lindo.»
Os pais, da área das matemáticas, nunca a estimularam muito para a leitura. «Não leias tanto que te estraga os olhos», lembra-se de os ouvir dizer. Mas Inês vinha com esse dispositivo ligado, uma coisa que mais parecia inscrita no ADN. «Tinha uma empregada que adorava que eu lhe lesse enquanto ela cozinhava. Lembro-me de ser adolescente e de estar na cozinha a ler-lhe O Amor de Perdição. E de chorarmos baba e ranho, as duas.»

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