O meu amigo vota Trump

No blogue As Palavras do Regresso, Joel Neto e Catarina Ferreira de Almeida percorrem os Açores e os Estados Unidos em busca do que regressar significa para um povo de migrantes e viajantes
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Dia sim, dia não, damos uma corrida. Atravessamos Calaveras Ridge, descemos a Country Club e percorremos toda a South Park Victoria até ao ponto em que esta deixa de ser uma drive e passa a ser uma avenue. A Catarina vai à vontade, na sua pose de maratonista, eu vou gerindo a passada, na tentativa de chegar ao fim com uma certa compostura. Estão cada vez mais compridas, estas corridas - há que dosear o esforço.

Ao longo de todo o caminho passamos por pessoas que nos cumprimentam: Hi!, Hello!, Hi there! São mexicanos, vietnamitas, filipinos. Julgo identificar alguns fenótipos. Mas, sobretudo, pergunto-me: quantas deles terão votado Trump? O Manuel votou Trump e também é imigrante. A Maria e o António Jorge votaram Trump: não só são imigrantes, mas são pobres. O Nelson votou Trump, o José Gabriel votou Trump - e nenhum deles, se houvesse eleições amanhã, votaria noutro senão em Trump.

Chega a ser extraordinário. E, no entanto, não são estúpidos, nenhum deles. Nem maus. O Nelson dá o litro em defesa da comunidade portuguesa. A Maria e o António Jorge esforçam-se por cultivar um código ético e afectivo como a poucos de nós ocorre. O Manuel, dentista, faz parte de 17 associações cívicas e - mais - dispensa todas as semanas um dia para arranjar de borla os dentes a sem-abrigos e toxicodependentes. Chega a emocionar-se quando fala disso.

Serão loucos? Dissimulados? Não são.

Viagens sucessivas aos EUA, e a vários pontos dos EUA, não foram suficientes para eu perceber tudo, mas mostraram-me isto: nós, europeus, fazemos um julgamento estético de Trump e do trumpismo, esse julgamento estético aponta no sentido certo, mas de resto não sabemos nada. Trump ganhou há dois anos por falta de comparência do adversário e, se calhar, vai ganhar novamente daqui a dois com o adversário mobilizado.

Vai ganhar em parte porque é Trump, o antipolítico. Vai ganhar porque a sua administração não é tão inconsequente e desvairada como o seu discurso. Vai ganhar porque traz apenso um estranho sentido de justiça que uma certa velha América gostaria de recuperar (e não deixa de ser interessante verificar que tantos portugueses se considerem suficientemente instalados para se sentirem bem no papel de velha América). E vai ganhar, principalmente, porque este país é economia.

"É a economia, estúpido!", disse Clinton. Foi disso que o Partido Democrata se esqueceu. Foi disso que até o Partido Republicano se esqueceu: que este é o país onde um cidadão pode adoptar uma auto-estrada, porque é a auto-estrada que usa e não se importa de contribuir para a respectiva preservação, mas até por isso monitoriza o rumo que levou o dinheiro do seu trabalho. E, a este, não o quer ver investido nos valores opostos àqueles que o fazem sentir-se americano, ou que teve de aprender para vingar na América, ou que os seus pais se viram forçados a integrar para terem um lugar para viver.

Eu nunca votaria em Trump. Tenho mesmo dúvidas de que, na América de Trump, não acabasse preso. Mas os anos, se não me ensinaram mais nada, ensinaram-me ao menos que ser civilizado é, em primeiro lugar, compreender o que motiva o outro e as razões por que o motiva. E não deixa de ser com uma certa desilusão que verifico que, neste momento, a prática da civilidade, na Europa, se faz de um certo primitivismo.



AS PALAVRAS DO REGRESSO: UM LIVRO, UM FILME, UM BLOGUE.


A literatura portuguesa tem sido sobretudo uma literatura de partida. O projecto As Palavras do Regresso, da autoria do escritor Joel Neto e da tradutora Catarina Ferreira de Almeida, marido e mulher, propõe a viagem inversa: a do retorno.
Consiste num livro centrado em diferentes tipos de regresso, todos eles com as ilhas dos Açores como primeira referência; num documentário de cinema e televisão (com realização de Arlindo Horta) feito a partir das entrevistas com esses que regressam; e ainda num blog de viagem e making-of, já disponível em www.aspalavrasdoregresso.com.
Do que falamos quando falamos de regresso? Quantas vezes menciona quem regressa a palavra «saudade»? E a palavra «casa»? E «mãe»? E «pertença»? Que palavras se repetem? Que palavras ficam por dizer? E, no fim da nossa viagem, qual será a suprema palavra do regresso? Eis a demanda.
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