O melhor do jornalismo, o pior da humanidade
Há uma frase do escritor inglês G. K. Chesterton que diz que não foi o mundo que piorou, as coberturas jornalísticas é que melhoraram muito. Ela aplica-se na perfeição à manchete do The Boston Globe de 6 de janeiro de 2002. O dia em que o jornal cravou na primeira página a denúncia de casos de abuso sexual sobre crianças por padres da Igreja Católica, e o encobrimento que deles a instituição promoveu durante anos. Um momento glorioso para o jornalismo de investigação, um acontecimento que fez tremer a maior instituição religiosa à face da Terra. É nos meses antecedentes a essa manchete que se foca O Caso Spotlight, filme de Tom McCarthy.
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Em 2001, o novo editor do jornal, Marty Baron (Liev Schreiber), incentivou a secção Spotlight, do The Boston Globe, a investigar uma possível história levantada por um artigo de opinião. Aí era reproduzida a denúncia de um advogado, sobre um padre que tinha molestado crianças em seis paróquias durante 30 anos, acusando o cardeal de Boston de abafar os casos, mantendo o padre. A equipa Spotlight, espécie de núcleo duro de investigação, era então constituída por Michael Rezendes (descendente de portugueses), brilhantemente interpretado por Mark Ruffalo, Walter Robinson (Michael Keaton), Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams) e Matt Carol (Brian d"Arcy James), que chegavam a estar um ano a perseguir matérias de relevo. E o que nos mostra, sem sensacionalismos, o filme de Tom McCarthy - nomeado para seis Óscares - é o processo que conduziu estes jornalistas de excelência à verdade obscura. Numa época em que a internet ainda não era ferramenta básica nas redações, assistimos à inquirição das fontes, pesquisa documental e confronto com os diferentes interesses instalados na cidade, todos eles - polícia, poder político, alta sociedade - de alguma forma ligados à Igreja.
A força do trabalho de campo
Levando-nos aos bastidores, O Caso Spotlight privilegia uma narrativa enxuta, assente da dinâmica do trabalho, como tem sido adequadamente identificado com Os Homens do Presidente, de Alan Pakula. Importa, aliás, referir que os atores beneficiaram de uma convivência com os verdadeiros repórteres, aprofundando as suas noções do universo jornalístico. E esse realismo apoiado no labor dos atores e no "sentir" do ambiente local - Boston -, mais do que centrado em casos individuais, faz de O Caso Spotlight um dos filmes mais sérios da sua geração, não se deixando tentar pelas opções cinematográficas óbvias, como a reprodução de imagens de abuso sexual. McCarthy, que também escreve o argumento com Josh Singer, quer as palavras, os testemunhos, porque são essas o caminho limpo e justo para a verdade. A certa altura, um homem diz ao grupo de repórteres: "Quando se é um miúdo pobre, de uma família pobre, e um padre te dá atenção, isso é muito importante. Como se diz não a Deus?" Ele vai ser uma das principais fontes do Globe, no momento em que o jornal, principalmente o seu editor, se apercebe de que a pedofilia na Igreja não existe só em Boston: a corrupção está no sistema.
Depois da publicação da reportagem, mais de 300 vítimas contactaram o jornal, mais de 600 notícias foram publicadas sobre o caso, pela equipa Spotlight. 250 padres da arquidiocese de Boston foram acusados. E o que aconteceu ao cardeal Bernard Law, que os encobriu? No final de 2002 foi colocado num importante lugar no Vaticano. Eis o epicentro de um terramoto que ainda hoje se faz sentir e com o qual a Igreja continua a ter dificuldades em lidar. Apesar disso, o filme foi elogiado por vários media religiosos americanos e pela própria Rádio Vaticano. Mas o horror dos homens não está só entre os clérigos, subsiste igualmente no meio jurídico, com as crianças vítimas a tornarem-se alto rendimento para alguns advogados. Este é um filme sobre vítimas do sistema, mas, acima de tudo, sobre os heróis reais que dignificam o jornalismo. A histórica reportagem do The Boston Globe recebeu o Pulitzer, em 2003, e o filme de McCarthy está muito bem posicionado na 88.ª corrida aos Óscares.