Aqui mesmo, a sul da Península Ibérica, do outro lado do Mediterrâneo, região de onde, como se sabe, provieram muitos dos ascendentes de portugueses e espanhóis, cujas marcas étnico-culturais, por conseguinte, integram hoje a identidade desses dois povos do sul da Europa. Em Melilla. Acrescente-se: em pleno território espanhol, pois a mesma é uma das duas cidades espanholas autónomas localizadas no norte de África, diante do Mediterrâneo, fazendo fronteira com o Marrocos..No passado dia 24 de junho, um grupo de emigrantes africanos que tentava entrar em Melilla, saltando a vala de proteção entre o Marrocos e a referida cidade, foi violentamente reprimido pelas forças conjuntas espanholas e marroquinas, do que resultou a morte de várias dezenas de pessoas..Esses emigrantes utilizavam uma das rotas habituais usadas pelos africanos provenientes dos países da África subsariana na sua tentativa de atravessar o Mediterrâneo e chegar à Europa. Um acordo diplomático entre a Espanha e o Marrocos tem tornado essa via particularmente difícil. É público que, como parte desse acordo, a Espanha financia as forças policiais e militares marroquinas, encarregadas, basicamente, do "trabalho sujo"..A repercussão internacional desse massacre foi diminuta. Os órgãos portugueses que o referiram, por exemplo, fizeram-no na sequência da manifestação do dia 26 de junho de cerca de 600 cidadãos espanhóis contra o massacre. Em Angola, tal manifestação só foi mencionada há dois dias. Ou seja, o que foi noticiado foi a manifestação e não propriamente o massacre, ocorrido antes..Aliás, e apesar da posição condenatória da União Africana, a própria imprensa do continente, em geral, deu pouca cobertura ao caso..As Nações Unidas já pediram um inquérito sobre o massacre de Mellila. Não se espere nada, porém, desse inquérito (se chegar a ser efetivado), a avaliar pela posição do chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez. Com efeito, e mesmo depois de divulgadas imagens que mostram as forças de segurança espanholas e as forças militares marroquinas atuando contra os emigrantes em plena vala que separa o Marrocos de Melilla, provocando diversas mortes, o líder espanhol afirmou que "o caso foi bem resolvido"..O massacre de Melilla aconteceu cinco dias antes da cimeira da OTAN em Madrid, que definiu um novo conceito estratégico da organização. Como já foi amplamente noticiado, tratou-se de definir a Rússia como o inimigo a abater, tal como antecipara, há poucos meses, o chefe do Pentágono, Lloyd Austin, com todas as consequências globais possíveis e imaginárias. O que não foi referido é que, da agenda política da OTAN, faz igualmente parte a consideração da imigração como uma ameaça à segurança dos estados da Aliança. Segundo o centro espanhol de investigação Delàs, essa visão já vem desde a cimeira da OTAN em Lisboa, realizada em 2010, permitindo abordar as crises migratórias pela via das armas..Não coincidentemente, e no quadro da cimeira da OTAN em Madrid, o chefe do governo espanhol encontrou-se com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, com quem assinou um novo pacto, que inclui o compromisso de aumentar a cooperação entre os dois países "para responder aos desafios da imigração irregular proveniente do norte de África" (sublinhado meu). Estando os EUA a milhares de quilómetros do território espanhol, imagine-se de que tipo será tal cooperação..Não nos inquietemos, entretanto. O objetivo da OTAN, de acordo com o seu secretário geral, Jens Stoltenberg, é "lançar uma mensagem de unidade das democracias que defendem a democracia e os valores da liberdade, da pluralidade política e do respeito aos direitos humanos e a uma ordem mundial baseada em regras como as da Carta das Nações Unidas". Os mártires de Melilla, desgraçadamente, jamais o saberão.. Escritor e jornalista angolano Diretor da revista África 21