O martírio dos suicidas (parte 2)
A ideia de que os jiadistas europeus são apenas rapazes vítimas de discriminação - "muçulmanos de gueto", como lhes chamava um dos atacantes do Charlie Hebdo - não bate com o perfil de muitos que viajaram para a Síria. Dounia Bouzar, responsável, em França, de um centro de apoio a familiares de jiadistas, disse ao The Guardian que muitos provêm de lares com educação superior e que não têm ligações familiares ao islão.
Especialistas tentam perceber os bombistas, mas o objeto do estudo está morto e a pesquisa fica limitada aos que não acionaram o detonador. Adam Lankford, autor do livro The Myth of Martyrdom, e Ariel Merari, da Universidade de Telavive, acreditam que muitos têm tendências suicidas. Mas ambos consideram que existem outras motivações. Lankford escreve: "O suicídio é condenado pelo islão e garante o inferno. Mas os mártires vão para o paraíso." Merari defende que a humilhação nacional é o principal combustível: "Tentam vingar as comunidades que sofrem. (Os entrevistados) mencionaram eventos que viram na TV, não eventos que lhes aconteceram pessoalmente." David Stevens, da Universidade de Nottingham, defende que a religião fortifica o desejo de pertença a um grupo especial, instaurando uma crença profunda no sacrifício. O custo da autodestruição compensa: morrer por uma causa, ser celebrado pelo grupo, ir para o paraíso. Porque será que os negros sul-africanos, em situações bem piores do que os "muçulmanos de gueto" na Europa, nunca se fizeram explodir a si mesmos durante o apartheid?
Crenças têm consequências e, se dogmáticas e sobrenaturais, resultam em sectarismo. Não são apenas os xiitas e os sunitas que desde a morte do profeta se matam com fervor. Em 1996, na Irlanda, os católicos fizeram campanha pelo não no referendo ao divórcio - uma mulher maltratada teria, assim, de continuar casada com o abusador. Muitas das atrocidades da Guerra dos Balcãs tiveram origem nas diferenças entre católicos, ortodoxos e muçulmanos. Nos EUA, cristãos matam médicos que fazem abortos. No Brasil, os evangélicos pregam a homofobia e a submissão da mulher.
Tanto o Alcorão como a Bíblia pretendiam explicar o mundo e a existência num tempo em que se enterravam crianças nas fundações das casas para afastar os espíritos maus. São livros glorificados, ainda que insuficientes e obsoletos. A humanidade estava na sua infância, respondia a tudo com superstição, nada se sabia sobre a psique ou o corpo humano. E ambos os livros estão cheios de contradições e falsificações históricas. Se são a palavra de um Deus infalível, porquê tanta confusão e mentira? Se, como se acredita no islão, o Alcorão é o mais belo livro de sempre (já li, não é, tampouco a Bíblia), porque garantem que essa beleza só pode ser entendida no original? Quem não fala o idioma está privado dessa experiência? E os que nasceram na China irão para o inferno porque não aceitaram Jesus (Mateus 25)? Não é causa de indignação, para a espécie humana, que quem se arrepende antes de morrer é salvo? Onde fica a responsabilidade individual? É expiada com o sacrifício de Cristo, como antes se fazia com os cordeiros? Nada disto faz sentido à luz dos conhecimentos que temos hoje, no entanto, questioná-lo é ofender milhões.
No mundo alegadamente civilizado e secular, o cristianismo tomou o caminho da escolha conveniente: fico com o Sermão da Montanha, mas esqueço o incitamento de Paulo à morte dos homossexuais - o que só prova que somos mais clarividentes do que os escribas de há dois milénios. A religião é um analgésico, um comodismo: não lhe dedicamos o mesmo escrutínio de credulidade e racionalidade que usamos em todos os outros aspetos da nossa vida - trocaríamos um médico por um curandeiro se precisássemos de um transplante? Em detrimento da busca pela verdade, o nosso juízo ficou preso nas fabricações, nos medos e na ignorância do passado. Mas aceitamo-lo com o mesmo desejo de conforto com que falamos a uma criança da fada dos dentes, como se esse conforto e a espiritualidade não fossem também alcançados no amor, na música, na literatura, diante de um pôr-do-sol ou das fotos de Marte - tudo o que transcende a nossa finitude e nos faz sentir parte de algo maior.
A religião é um bug no sistema operativo, e faz falta que se questione, sem paninhos quentes, essa ideia de que a fé não se discute, tão danosa para a liberdade e para o pensamento indagatório que nos trouxe até aqui. Só a religião não explica os atentados suicidas (basta olhar para a história do Médio Oriente após a queda do império Otomano), mas é uma condição necessária e derradeira, é ela que confere um sentido de poder sobrenatural, exclusividade, justiça celestial - estamos na equipa do Deus certo - e que oferece a recompensa na morte, aquela que justifica o desejo de martírio, ou, nas palavras de Abdelhamid Abaaoud, que organizou os atentados em Paris: "Procurem o orgulho e a honra, só os encontrarão na nossa religião."