O manual de tortura que os líderes esqueceram

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Desnuclearização, paz na península coreana, relações bilaterais, visitas à Casa Branca... tudo isto está no acordo assinado esta madrugada entre Kim Jong-un e Donald Trump. Exceto uma referência aos direitos humanos - embora Trump tenha dito que tinham ficado de falar no assunto. Este é o elefante no meio da sala de que ninguém quer falar neste momento.

Já durante a semana, e conhecendo-se previamente alguns dos pontos que iam ser discutidos, alguns dissidentes norte-coreanos tinham demonstrado a sua frustração.

Numa entrevista à revista Foreign Policy, Yeonmi Park, estudante da universidade de Columbia diz que "dava crédito a Trump", porque o presidente falou pela primeira vez do assunto, há uns meses, em janeiro. "Isto nunca tinha acontecido", disse. Mas, por outro lado, "ele devia ter obrigado a Coreia do Norte a algumas concessões. Se Trump quer mesmo a mudança devia ter pedido a Kim para abrir os campos de concentração e deixar os jornalistas entrarem no país".

Thae Yong Ho, diplomata norte-coreano a viver no sul, disse recentemente que a ideia que a Coreia do Norte se iria completamente desnuclearizar era uma "fantasia", sobretudo porque esse processo conduziria ao "colapso do seu poder absoluto sobre o país".

Na verdade ambos são porta-vozes daquilo que o mundo já sabia há muito, e que o relatório da Comissão de Inquérito aos Direitos Humanos na Republica Democrática da Coreia apurou em fevereiro de 2014.

Em março de 2013 o Conselho de Direitos Humanos da ONU decidiu avançar para uma comissão de inquérito sobre a situação da Coreia do Norte. O australiano Michael Kirby, a sérvia Sonja Biserko e o indonésio Marzuki Darusman, relator especial para os direitos humanos na República Popular da Coreia do Norte, foram os membros indicados para prosseguir com a investigação.

Menos de um ano depois, esta comissão concluiu que a violação dos direitos humanos "é sistemática, generalizada e foi cometida pela República Popular Democrática da Coreia". Em muitos casos, "as violações encontradas traduzem-se em crimes contra a humanidade e são baseadas em políticas de Estado. Os principais agressores são funcionários do Departamento de Segurança do Estado, o Ministério de Segurança do Povo, o Exército do Povo Coreano, o Gabinete do Ministério Público, do Poder Judiciário e do Partido dos Trabalhadores da Coreia, que estão agindo sob o controlo efectivo dos órgãos centrais do Partido dos Trabalhadores da Coreia, a Comissão Nacional de Defesa e o Líder Supremo da República Popular Democrática da Coreia."

O relatório é uma cartilha de horrores.

- Violações da liberdade de pensamento, expressão e religião - nomeadamente em relação aos católicos. Kenneth Bae um evangelista que fazia tours no país foi condenado a 15 anos de trabalhos forçados e, 2013 por crimes contra o governo.

- Discriminação sexual entre homens e mulheres.

- Violações da liberdade de movimentos e residência - há vários relatos de migrações internas por razões de trabalho forçado.

- Falta de direito à comida e à vida - segundo a UNICEF há mais de 200 mil crianças com fome e 60 mil severamente malnutridas.

- Detenções arbitrárias, tortura, execuções, campos de prisioneiros - segundo um relatório do Departamento de Estado americano haverá entre 80 a 100 mil prisioneiros.

- Raptos e desaparecimentos de mais de 200 mil estrangeiros - alguns dos que estão presos irão ser libertados, segundo o acordo.

Segundo a ONU, estes "não são meros excessos do Estado. São componentes essenciais de um sistema político que abandonou os ideais em que afirma se ter fundado." Diz o relatório que "o estado opera uma máquina de doutrinação abrangente, que afecta todos desde a infância, para propagar um culto oficial da personalidade para fabricar uma obediência absoluta ao líder supremo (Suryong) de forma eficaz para a exclusão de qualquer pensamento independente da ideologia oficial e da propaganda Estado".

"Os cidadãos são punidos por quaisquer atividades "anti-Estado" ou manifestações de dissidência", acusa o relatório. "A Comissão encontrou evidências de violações sistemáticas, generalizadas e graves do direito à alimentação na República Popular Democrática da Coreia", mas também de "sequestros e prisões" arbitrárias, de tortura e assassinatos extra-judiciais, de segregação e discriminação de género". Todas estas atrocidades, conclui a ONU, "foram aprovadas ao nível do Líder Supremo".

A lista de "crimes contra a humanidade" é longa: "assassinato, escravidão, tortura, violação, abortos forçados e outras formas de violência sexual, perseguição política, religiosa, racial e de género, a transferência forçada de populações, o desaparecimento forçado de pessoas."

Por isso, nas suas conclusões, a comissão de inquérito aconselhou a ONU a "garantir que os maiores responsáveis ​​pelos crimes contra a humanidade na República Popular Democrática da Coreia sejam responsabilizados. As opções para alcançar este fim incluem uma referência da situação ao Conselho Penal do Conselho de Segurança ou o estabelecimento de um tribunal ad hoc pelas Nações Unidas".

E conclui: "A gravidade, escala e natureza destas violações revelam um estado sem paralelo no mundo contemporâneo".

Depois disto, a ONU fazia várias recomendações. Entre elas, a reforma do Código Penal, a introdução de imprensa livre, a permissão de religiões como a católica, a autorização do acesso livre à comida, a libertação das viagens dentro e fora do páis, o fim da perseguição de pessoas com base na lealdade ao partido e ao Estado, a reforma do próprio estado a diminuição do poder do Líder Supremo e do Partido dos Trabalhadores.

É possível que com esta cimeira esse poder tenha, pelo contrário, vindo a ser reforçado.

Até porque não está prevista, como o relatório propunha, a presença de uma base da ONU no país.

Como dizia a dissdente Lee Hyeon-seo, que esteve recentemente em Portugal a lançar o seu livro, A Rapariga com Sete Nomes, «nós tivemos lavagens cerebrais e vivíamos afastados do resto do mundo. Isso fazia-nos não nos queixar. É a única coisa que conhecemos, portanto achamos que as coisas são assim. Para mim - e para a minha mãe, que ainda hoje acredita nisso - éramos vítimas dos imperialistas americanos e os sul-coreanos eram escravos deles. O nosso país era o melhor do mundo. Eu achava que o resto do mundo era bem pior que a Coreia do Norte, por isso ficava agradecida ao nosso líder."A canção que os meninos cantavam na escola chamava-se "Nada a Invejar".

Nessa palestra que deu em Lisboa, a dissidente disse que só começou a perceber o que estava a acontecer quando houve a primeira fome nos anos 90.

Ou seja, a diminuição de sanções externas pode, afinal, aumentar a força de Kim. Ou não?

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