O maior Carnaval de África

A vida são dois dias e o Car naval são três? Bom, na Guiné são... quatro meses. Depois do concurso e do desfile de máscaras, as ruas de Bissau continuam repletas de música e barracas com gastronomia tradicional. A festa só acaba em maio, quando chegam as chuvas.
Publicado a
Atualizado a

O Carnaval na Guiné-Bissau voltou ao tempo dos avós. Dos monstros e animais marinhos, docapataz e da lavadeira, dos macacos, das águias e dos dragões, dos padres e das freiras. As máscaras gigantes, feitas de lama e pasta de papel, vestiram de novo pessoas e fizeram renascer o velho Entrudo guineense, herança do colonialismo, que se perdeu nos anos 1990, sobretudo por falta de dinheiro.

A Direcção-Geral da Cultura não quer que a Guiné deixe de ser palco do maior Carnaval de África e quis trazer de volta as máscaras tradicionais das décadas de 60, 70 e 80 do século passado. Gigantes e coloridas, representam os símbolos e rituais das mais dequarenta etnias do país. Ao contrário do que aconteceu nos últimos anos, para participar no concurso de máscaras não chega ter uma rainha, vestes tradicionais, música e coreografia. Para desfilar no cortejo do Sector Autónomo de Bissau (onde participamnove bairros), cada grupo tem de ter pelo menos cem pessoas e trinta máscaras de grande porte - com cerca de dois quilos e mais de um metro.

O vencedor levará para casa um prémio de 5,5 milhões de francos CFA (cerca de sete mil euros), patrocinado pela companhia de telecomunicações Orange, que se quer tonar a maior operadora do país e libertou mais de cem mil euros para pagar todas as despesas da festa. «Exigimos apenas que esse dinheiro fosse também usado para aumentar os prémios em relação ao ano passado, para motivar mais os concorrentes», revela o gabinete de comunicação da Orange.

E se é verdade que não é só em Bissau que se faz festa (existem também desfiles e um concurso com prémios a nível regional), são as ruas da capital que são inundadas por milhares de pessoas que aí se encontram para a «desbunda total», como dizem os guineenses. Algumas folionas descalças, outras quase nuas, muita música e movimentos de dança que são verdadeiras acrobacias.

Na Guiné não há samba, mas todos comparam a festa à do outro lado do Atlântico. «Depois do Brasil, o Carnaval da Guiné-Bissau é o maior do mundo», diz Manuel Taborda, mais conhecido por Nelito, o director-geral da Cultura e coordenador nacional do Carnaval. «É a nossa grande festa, a que reúne mais pessoas. É mesmo de se ficar maluco.»

João Gomes, 45 anos, confirma-o. De férias, adiou o regresso a Portugal e às atividades de eletricista e músico por amor ao bairro do Bandim. «Uma pessoa está ligada à arte e sente-se mal de ver os outros bairros a participar no desfile e nós não», justifica. Quem o desafiou foi o primo Faustino, artista plástico, que também está na Guiné de passagem mas não resistiu a recordar os seus tempos de miúdo. «Temos esperança, apesar de sermos o bairro mais penalizado. O nosso principal problema é a angariação de fundos. Os outros têm muitos apoios, como vivemos em Portugal há mais de vinte anos não conhecemos tanta gente...», queixa-se Faustino Gomes, de 50 anos.

O ministro das Finanças do governo de transição foi quem mais os ajudou. Deu-lhes cinquenta mil francos CFA (cerca de 75 euros) para comprar farinha para fazer cola e tintas. Estavam à espera de mais, «mas se todos dessem o mesmo já não era mau». Abubar Demba Dahaba vive no Bandim, a sua casa faz parte de uma correnteza de vivendas de luxo bastante afastada do ex librisdo bairro: o popular mercado do Bandim. «Quando deixei a Guiné, a zona onde ele vive era um descampado», descreve João. «Quando cheguei e vi estas construções, nem queria acreditar. Pensei que tinha chegado ao Algarve. É a Quinta do Lago aqui do sítio.»

Os dois primos são os responsáveis pela realização das máscaras e pelos ensaios de dança do Bandim. Durante mais de três semanas, foram os primeiros a chegar ao quintal do CIFAP de Bissau, uma escola secundária gerida por seminaristas nos arredores de Bissau, e os últimos a sair. Transportavam numa carrinha de caixa aberta mais de três toneladas de lama, compravam comida feita para não perderem tempo e até montaram um sistema de abastecimento de água e um gerador que lhes iluminava as noites de trabalho. Coordenavam uma equipa de voluntários rotativos, todos filhos do bairro, que ali passam as horas vagas. A moldar a lama, a forrá-la com mais de cinco camadas de pasta de papel (feita do papel dos sacos de cimento e farinha de trigo e água fervidas num fogareiro de carvão) e, por último, a pintar as assustadoras figuras com cores garridas.

Foram os espanhóis, portugueses e franceses que trouxeram o Carnaval da velha Europa para o «novo mundo». «Uma das poucas influências do colonialismo bem aceite pelas populações aborígenes», refere Daniel J. Crowley, especialista em História de Arte e Antropologia da Cultura, numa edição de 1989 da TDR, uma publicação da MIT Press. No entanto, devido às fortes tradições locais, África foi o continente que ofereceu mais resistência. A Guiné-Bissau é a «exceção», um «caso de estudo», acrescenta.

Nos últimos anos os temas oficiais do Carnaval (o de 2013 é a valorização da diversidade cultural) foram a reconciliação entre os povos, a liberdade e a saúde, mas a paz nem sempre reinou: «Na minha infância, o Carnaval era muito violento. As máscaras eram aterradoras e nós, miúdos, tínhamos muito medo, fugíamos. Como as pessoas andavam com a cara tapada, era uma altura em que se aproveitava para fazer vingança de episódios que tinham acontecido ao longo do ano. Há histórias de gente que tem cicatrizes até hoje. Já na adolescência, usávamos a mesma técnica para conseguir as meninas. Perguntávamos-lhes se queriam ficar connosco antes do Carnaval e ameaçávamo-las. Se não éramos correspondidos, batíamos-lhes», recorda Fernando Mendes, coordenador-geral do Sintrenses Unidos, o grupo que representa o bairro de Sintra.

O desfile nacional, que se realizou pela primeira vez em 1979, veio apaziguar os ânimos. «As coisas acalmaram porque toda a gente se envolvia a fazer as máscaras no seu bairro e não havia tanto tempo para andar a bater nas ruas», conta. Fernando aprendeu a fazer os «entrudos» logo quando nasceu, há cinquenta anos. Foi a mãe que o ensinou. O saber é passado de geração em geração. Como todos os miúdos, iniciou-se como forrador (a colar o cartão dos sacos de cimento envolvido em farinha no molde de barro) e foi aperfeiçoando a técnica depois de ver «os grandes» a fazer.

Fernando é contabilista mas entrou de férias em meados de janeiro. Passava os dias no quintal da vivenda de um dos moradores do bairro de Sintra. «Há quem faça máscaras de papelão, dizem que é moda, criatividade... Mas eu não gosto de criar, quero seguir as origens e isso leva tempo», explica. Para fazer uma máscara, precisa de sete dias, um executor e três forradores.

Apesar de na Guiné-Bissau um ordenado de cem mil francos CFA (cerca de 150 euros) ser acima da média, o coordenador dos Sintrense diz que o prémio de cinco milhões, atribuído ao vencedor do desfile não é assim tão grande. «Além das máscaras, ainda temos de preparar as danças. Só em roupas foram mais de quinhentos mil. Investimos, por isso também ganhámos tudo no ano passado -- do primeiro ao quinto lugar», recorda.

Quando ganham, vinte por cento é guardado para o ano seguinte, com o que sobra alugam um autocarro e vão com «a malta que trabalhou e está a morrer de cansaço» um fim de semana até Varela (uma zona de praia no Norte Litoral da Guiné). «Sabe mesmo bem, se quiser também pode vir connosco!», convida com simpatia, como bom guineense que é.

O grupo do bairro de Sintra é o que tem uma organização mais profissional. Com uma equipa de 66 pessoas, todos homens, revezavam-se em dois turnos e na semana antes do desfile trabalharam 24 horas por dia. Nada que os tenha impedido de ser alvo de ataque por parte dos bairros rivais. «Fui a casa no domingo à noite ver os meus filhos, eles ficaram aqui a trabalhar e disseram-me que ouviram um barulho horrível. Quando viram o que era, já tínhamos várias máscaras partidas. Penso que foi a concorrência, alguém do Chão de Papel», atira. E como em casa roubada trancas à porta, Fernando decidiu montar um quarto improvisado num anexo, nas traseiras da vivenda onde trabalhavam. Um colchão e uma garrafa de água cobertos por quatro paredes revestidas de cimento. «Não preciso de mais, durmo poucas horas», justifica.

«Este tipo de sabotagem é normal», atenua Faustino Gomes.Na década de 1980 aconteceu entre o Bandim e o Chão de Papel. Nós até fomos os primeiros a provocar, destruímos o trabalho deles e depois recebemos a resposta. Mas no final fica tudo bem, somos todos irmãos.»

Todos os bairros com quem falámos dizem que a vitória é garantida. O Chão de Papel não é exceção. É um dos grandes da década de 1980, ganhou tudo entre 1981 e 1984, mas depois nunca mais participou. Se conseguirem o prémio, querem fundar uma associação de caráter social para reabilitar a escola do bairro e criar emprego para as mulheres e os mais jovens. «E, claro, logo depois da vitória não vamos deixar faltar a festa para os miúdos que aqui estiveram a trabalhar e a sua família», adianta Carlos Barros, 65 anos, responsável pela Comissão Técnica do Chão de Papel.

Carlos é arquiteto e pintor. Usa uma boina como a de Picasso, uns óculos de sol Ray-Ban, barba grande e mal aparada. Gere um grupo de crianças e jovens que o ajudam quando não têm escola. «Como não participamos há muitos anos, deixámos muita gente preocupada. Chegamos a fazer dez máscaras por dia. Os miúdos estão muito motivados. Eu desenho as imagens e eles reproduzem-nas em lama. Às vezes também existem zangas, mas estou cá para os apaziguar e manter a calma. É como a língua com os dentes: acontece mas não deve», ironiza.

Carlos Inspira-se nas figuras que vê nos livros e nos muitos símbolos das etnias guineenses como os fulas, manjacos, balantas ou papéis. Transpira orgulho no seu bairro: «O maior de Bissau, o primeiro encontrado pelos portugueses.» Pelo meio, faz ainda questão de enumerar todos os nomes famosos que ali nasceram: Flora Gomes (realizador),Yanick Djaló (futebolista), Nino Vieira (ex-presidente da Guiné-Bissau, assassinado em 2009). «É o bairro da resistência», resume.

O nervosismo e a ansiedade crescem à medida que a segunda-feira de Carnaval se aproxima - dia do desfile do Sector Autónomo de Bissau em que são anunciados os prémios. Mas depois tudo passa. E rápido. As rivalidades são esquecidas e a concentração de pessoas é transferida das principais avenidas de Bissau para a várias barracas improvisadas no bairro da Ajuda.

Aí forram-se os estômagos com gastronomia tradicional - como os caldos de chabeu ou mancara - e rega-se tudo com muitas minis ao som de ritmos africanos. Em maio, quando começa a época das chuvas e passa a ser impossível comer numa esplanada, recolhem-se as mesas e as cadeiras, a confraternização deixa de ser feita nas ruas e diz-se até para o ano à grande festa.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt