O maior bairro social da Europa transformado em galeria a céu aberto

O Bairro Padre Cruz vai ser o centro do primeiro festival de arte urbana da capital, que vai contar com Vhils como um dos curadores. Quem lá mora garante que "não é tão mau como se diz" e que vai ficar "muito bonito"
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"Aqui é tudo bom. Há boas pessoas, há boa vizinhança." É com tranquilidade que Fátima Rodrigues entra com as duas filhas pequenas no seu bairro de sempre, o Padre Cruz, em Lisboa, o maior bairro social da Península Ibérica. Lá dentro, há crianças a brincar na rua, jovens em bicicletas, adultos e idosos sentados no mercado. A partir de dia 30, andarão por ali também graffiters reputados, como Vhils, Lara Seixo Rodrigues ou Pariz One.

Na fachada do Clube de Futebol "Os Unidos", chama já a atenção o mural pintado há poucos dias, a propósito da apresentação do primeiro festival de arte urbana da capital, a decorrer entre dia 30 deste mês e 15 de maio. O seu epicentro será ali. "Será uma galeria a céu aberto", antevê o presidente da Junta de Freguesia de Carnide, entidade que propôs à Galeria de Arte Urbana (GAU), um departamento municipal, que o bairro onde residem cerca de 5500 pessoas fosse o palco principal de uma iniciativa que promete dinamizar toda a cidade. O primeiro passo, adianta Fábio Sousa, foi perguntar aos moradores se era isso que queriam, o segundo convencer aqueles que mostraram "alguma resistência", sobretudo por "desconhecimento".

Serão cerca de 30 os artistas que vão criar o maior festival de arte urbana da capital, que vai ter como grande objetivo realizar meia centena de intervenções, numa área total de 2500 metros quadrados. O evento vai contar com sete curadores, entre os quais Vhils. Fátima Rodrigues até nem sabia que o Bairro Padre Cruz iria receber o Muro, mas nem por isso deixa de se mostrar agradada com a ideia. "Vai ficar muito bonito", prevê a lisboeta de 31 anos, sem deixar de reconhecer que esta pode ser uma forma de mostrar que se trata de um local seguro. "Não é assim tão mau como dizem. Toda a gente pode andar sossegada", garante.

Os moradores não contêm a irritação e o desalento perante o modo como se tem falado sobre bairros sociais desde que, há uma semana, três agentes da PSP e duas civis foram baleados na Ameixoeira, outro bairro municipal da capital. "Nunca tivemos problemas", asseguram Abílio e Maria de Jesus Ribeiro, de 75 e 66 anos. O casal aproveita a ciclovia que ali existe para fazer mais uma caminhada no bairro em que ele mora já há 55 anos. "Em todo o lado há gente boa e gente má. Aqui, no Restelo ou em Cascais", acrescentam. Só lamentam que não existam ali restaurantes. Ou até um parque verde.

Uma nova centralidade?

Elisete Andrade tem 70 anos, começou a residir no Bairro Padre Cruz aos 15 e é hoje a presidente da associação de moradores local. "No início, só existiam casas de alvenaria e de lusalite", recorda a idosa. As últimas já desapareceram totalmente, as primeiras estão neste momento a ser demolidas de forma faseada, ao mesmo tempo que vão sendo construídas novas habitações. A primeira pedra foi lançada em janeiro, numa ocasião em que, além da própria Elisete Andrade, discursaram o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, e a vereadora da Habitação, Paula Marques.

Achamos que é um sonho", afirmou então a presidente da Associação de Moradores do Bairro Padre Cruz.

Quase três meses depois, a dirigente reitera a importância da iniciativa. "É uma população bastante envelhecida. As casas têm dois pisos e as escadas são íngremes. Têm o quarto em cima e a cozinha em baixo", explica Elisete Andrade, frisando que a urbanização começou por ser edificada por funcionários da autarquia e trabalhadores empregados nas obras de construção da Cidade Universitária.

Nessa altura, não havia transportes públicos para um bairro que ainda hoje parece estar desligado da cidade e que tinha as suas próprias marchas populares, com as suas ruas a lutarem pelo primeiro lugar do pódio. Hoje, reconhece, o bairro é bastante diferente (ver texto secundário), mas nem por isso deixa de, quando fica até mais tarde na cama, abrir propositadamente a janela para a sua vizinha saber que está bem.

"O Bairro Padre Cruz é um bairro exatamente igual a todos os outros, com alguns desafios e com algumas potencialidades", salienta o presidente da Junta de Freguesia de Carnide. Fábio Sousa defende, de resto, que com o festival de arte urbana o local pode, "apesar de não estar no centro de Lisboa", tornar-se um novo espaço de atração cultural, artístico e turístico. Sempre sem deixar de ter em atenção os interesses de quem ali habita.

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