Quando eu tinha 20 anos vivia na minha cidade, Luanda. E, lá, o que estava a dar era o lusco-fusco. Eu sei que o Ricardo Araújo Pereira fez disso uma piada deslocalizada: «A capital mundial do lusco-fusco é Kinshasa», disse ele muitos anos depois. Mas nos meus 20 anos a capital mundial era onde eu estava. Luanda tinha, à volta de 1968 e ainda hoje, um crepúsculo breve e explosivo. Entre as 6 e 25 da tarde e os 25 para as 7 da noite, o Sol que pouco antes se tinha escondido nas nuvens mais longínquas, para lá da Samba, da Fortaleza de São Miguel e da ilha, reaparecia na linha do horizonte, fazia-a trampolim e, vermelho e amarelo, mergulhava. Mas não é desse lusco-fusco que eu falo..O meu virava as costas a esse e já não existe. Quem me preveniu que um dia o meu lusco-fusco poderia desaparecer (desses desaparecimentos que não voltam no dia seguinte) foi o padre da ilha. A Igreja de Nossa Senhora do Cabo foi fundada trezentos anos antes de eu nascer, construída sobre outra que já lá estava havia um século a servir os «axiluandas», os homens do mar, bantos altos, cobertos de panos até ao tornozelo. Nessa, Paulo Dias de Novais, que fundou a minha cidade, tinha rezado missa; a outra, a que chegou até mim, fora erguida para agradecermos falar a língua do nosso mar do Sul e não a fria e gutural dos holandeses. Foi com o padre da Igreja do Cabo, torre de dois sinos e pequena cruz encimando a frontaria triangular, quitandeiras sempre à porta, foi com esse homem ainda jovem, negro cabinda, que me encontrei um fim de tarde de 1968, nas terras altas da cidade, longe do mar. Falávamos da nossa terra e na nossa língua..Falávamos com esperança. «Um dia...», dizíamos nós muito, na nossa conversa a andar. Nos passeios antes de atravessar o asfalto, cercava-nos o movimento da gente que vinha da Baixa, findo o trabalho, brancos e negros de camisa de Macau, rapazes arrastando uma perna de poliomielite, meninas inventando a minissaia que faria furor na Europa, regressando a casa, de chão de cimento vermelho e liso de São Paulo, ou terra batida das cubatas do Sambizanga. Àquela hora crepuscular as pessoas tinham as minhas cores, porque as via ao «luscus», como quem só tem um olho, e «fuscus», pardos. Não eram pretos, nem pulas, nem monhés, nem cafusos, nem cabritos, eram luandenses, luandinos, camundongos e caluandas. Como eu..Era eu que dizia nesse momento mais um «um dia...», quando o padre da Igreja do Cabo, negro retinto como são os cabindas, parou, agarrou-me no braço e tardou a dizer. Então, e só então, disse: «Um dia, se calhar, já não seremos assim.» E apontou-me com o olhar o meu lusco-fusco. Tardei a perceber, acho que não quis mesmo perceber. O cabinda disse: «E eu tenho tanta pena.» Voltámos a andar, eu julgava desmenti-lo porque estávamos entre os luandenses que éramos, mas quanto mais andávamos mais cada um de nós ia para o seu lado. .Tinha 20 anos e posso dizer que falhei. Mas não foi então, foi depois. Nos nossos 20 anos, eu e o meu companheiro José - um branco e um negro -, cada um carregando um embrulho, íamos a pé para a cadeia de São Paulo, a conversar os nossos «um dia...», sem a presciência amarga do padre da Igreja do Cabo. Nos embrulhos levávamos kitaba e doces de coco e banana, que a dona Antónia, a mãe do Zé, preparava para os presos políticos. O Hermínio Escórcio, preso há vários anos, dava-nos conselhos prudentes, «estudem, rapazes, estudem...», mas mais do que por ele, íamos para ver o espanto dos guardas com o par de luandenses amigos. Eu fui para o exílio e o Zé Van-Dúnem foi preso, depois o nosso «um dia...» chegou, ele foi morto e eu regressei ao exílio. Parece que o filósofo Paul Nizan, prefaciado por Sartre, começa um livro com estas duas frases: «Tinha 20 anos. Não deixarei ninguém dizer que é a mais bela idade da vida.» Só posso dizer que não sou filósofo.