O líder arménio sem ideologia que admira Che Guevara e aposta no liberalismo económico

Nikol Pashinyan foi o protagonista da revolução pacífica de 2018. O novo primeiro-ministro arménio não se revê em rótulos políticos e sente-se mais confortável em palco, com um microfone na mão a apelar à revolta, do que em reuniões governamentais, apertado com fato e gravata
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Era uma vez um país que mudou radicalmente de paisagem política em 2018. Em janeiro, o Partido Republicano, no poder há duas décadas, ocupava 58 das 105 cadeiras disponíveis no Parlamento, depois de ter vencido as legislativas de abril de 2017 com 49% dos votos. Essa mesma força política chega ao final de dezembro sabendo que não terá um único representante na próxima legislatura, que arranca no próximo dia 14. Nikol Pashinyan, que começou o ano como apenas um dos nove deputados de uma coligação composta por três partidos, acaba 2018 como primeiro-ministro, depois de ter arrebatado 70,4% nas urnas. Era uma vez a Arménia.

O que motivou esta reviravolta na equação das forças partidárias? Quem é este ex-jornalista e ex-preso político que protagonizou a mudança? Pode falar-se numa revolução?

Quase todos, mesmo aqueles que não morrem de amores por Pashinyan, reconhecem-lhe o talento que demonstrou a capitalizar o descontentamento popular. E não se coíbem de gabar-lhe a ferocidade como opositor. "O protesto é a sua zona de conforto. É em cima de um palco, com o microfone na mão, a gritar e a criticar alguém que se sente mais confortável. Mesmo como primeiro-ministro é um oposicionista", sublinha Alen Ghevondyan, analista político e professor de Relações Internacionais na Universidade de Ierevan.

Talvez por isso, Pashinyan evita a todo o custo dar respostas diretas e claras sobre o seu posicionamento ideológico. Diz que não gosta de "ismos", que é sobretudo pró-Arménio e argumenta que no século XXI as barreiras entre esquerda e direita são já muito ténues. "Não é correto dizer que sou liberal, centrista ou social-democrata", voltou a sublinhar no dia seguinte às eleições, em diálogo com a imprensa internacional presente em Ierevan. Durante esse encontro, questionado pelo DN sobre os líderes políticos que mais admira, Pashinyan avançou quatro nomes: o polaco Lech Walesa, o checo Václav Havel, o sul-africano Nelson Mandela e o cubano Che Guevara. Para justificar a escolha do revolucionário da América Latina, Pashinyan acrescentou: "Sou contra qualquer tipo de violência, mas ele foi alguém que, depois de ter ocupado postos no governo, decidiu sair para continuar a sua ação revolucionária em condições muito complicadas e precárias. Admiro-o por isso. Porque só um homem com valores muito fortes é capaz de fazer o que ele fez".

No plano económico, Pashinyan poderá ser rotulado como um liberal. Em quase todas as respostas sublinha as vantagens da iniciativa privada e do investimento estrangeiro, defende um sistema caracterizado pela meritocracia e acredita que está nas mãos de cada um, através do trabalho, a escapatória da situação de pobreza. Garante também que, assim que tomar posse, irá fazer aprovar uma nova lei fiscal que isentará de impostos as microempresas. "A sua ideologia é não se prender a uma ideologia. Num dia pode ser socialista e no outro liberal. A única coisa que ele é sempre é populista", defende, em declarações ao DN, Ruben Melikyan, antigo ministro-adjunto da Justiça e especialista na área dos Direitos Humanos.

Sempre que possível, Pashinyan recorre também à linguagem simbólica para comunicar, explica Alen Ghevondyan. Um exemplo disso é a t-shirt estampada com um camuflado militar que gosta de usar. Trata-se, no entender deste analista, de uma forma de passar uma mensagem de segurança e de força, algo determinante num país que nunca assinou a paz com o Azerbaijão e que tem vivido sempre à beira da guerra.

O poder saiu à rua

Pashinyan ascendeu ao cargo de primeiro-ministro no passado mês de maio. As demonstrações populares que levariam à queda do governo e do Partido Republicano iniciaram-se no final de março, no momento em que começou a ser ventilada a hipótese do então presidente, Serzh Sargsyan, assumir o cargo de primeiro-ministro depois de dez anos como chefe de Estado.

O rastilho, porém, vinha de trás. Em 2015, através de um referendo, ficara decidido que o regime semipresidencial da Arménia daria lugar a uma república parlamentar, o que, na prática, significa mais poderes para o primeiro-ministro e menos para o presidente. Assim, Sargsyan, ao trocar a presidência pelo governo, poderia continuar como a figura mais poderosa do país. Esta manobra, vista como uma tomada do poder, foi a gota de água que fez transbordar a paciência de uma sociedade civil cansada de um regime visto como demasiado corrupto. Foi então que o deputado Nikol Pashinyan, com o apoio de vários grupos de cidadãos, emergiu como líder do descontentamento.

A revolta popular aumentou ainda mais a 17 de abril, quando Sargsyan, que terminara o mandato como presidente uma semana antes, foi nomeado primeiro-ministro (cargo que já ocupara entre 2007 e 2009) com os votos dos deputados do Partido Republicano. Desta vez, no entanto, o consulado seria curto. Apenas seis dias depois e com as praças e as ruas de Ierevan repletas de manifestantes, Sargsyan, encurralado, viu-se obrigado a pedir a demissão. "As ruas estão contra a minha liderança. Vou satisfazer o vosso desejo", afirmou no momento da saída de cena, acrescentando ainda: "Pashinyan estava certo e eu estava errado".

A 8 de maio Pashinyan foi eleito primeiro-ministro pelo Parlamento Arménio, com 59 votos a favor (incluindo 13 de deputados do Partido Republicano) e 42 contra.

Certo de que a vitória seria sua numa eventual ida às urnas, o novo líder do governo demitiu-se em outubro para provocar eleições antecipadas e legitimar-se através do voto. O plano deu certo. A coligação O Meu Passo, por si liderada, conseguiu 70,4% e não deu qualquer hipótese aos adversários. Em segundo lugar na contagem de votos, com 8,3%, ficou o partido Arménia Próspera, liderado pelo controverso empresário Gagik Tsarukyan. Em terceiro, a fechar a lista das forças políticas que conseguiram ultrapassar os 5% necessários para obter representação parlamentar, ficaram os liberais e pró-europeus do Arménia Luminosa, com 6,4%. Depois de duas décadas à frente do destino do país, o Partido Republicano não foi além dos 4,7%.

Jornalista e preso político

Nikol Pashinyan nasceu em junho de 1975, na cidade de Ijevan. Estreou-se como ativista ainda adolescente, em 1988, organizando e participando em manifestações favoráveis à autodeterminação do Nagorno-Karabakh (território de maioria Arménia e cristã que viria a proclamar a independência em relação ao Azerbaijão). Mas não foi combater na guerra que se travou no início da década de 1990. Por lei estava isento dessa obrigação, uma vez que os seus dois irmãos mais velhos já tinham pegado em armas. Entre 1991 e 1995 estudou jornalismo na Universidade de Ierevan. A veia contestatária valeu-lhe, no entanto, a expulsão da faculdade. Um percalço que não impediu o sucesso como repórter. A ascensão na carreira foi rápida e em 1999 foi nomeado diretor do diário Haykakan Zhamanak, um dos principais jornais arménios.

O ativismo e o protesto fizeram sempre parte da sua participação pública. Nas eleições presidenciais de 2008, numa altura em que ainda ganhava a vida como jornalista, foi um dos principais apoiantes de Levon Ter-Petrosyan, o primeiro presidente Arménio (1991-1998) no período pós-soviético que regressava então ao combate político para impedir Serzh Sargsyan de ascender ao poder. Ter-Petrosyan saiu derrotado, não indo além dos 21,5%. O seu adversário venceu com 52,8%. Na sequência das eleições, os arménios saíram à rua em protesto, alegando que o sufrágio não tinha sido transparente. Um dos principais instigadores das manifestações foi Pashinyan. A 1 de março, depois de dez dias de ocupação pacífica da Praça da Liberdade, em Ierevan, deram-se os confrontos com a polícia que se saldaram em dez mortos. Apontado pelo regime como um dos maiores responsáveis pela violência pós-eleitoral, Nikol Pashinyan, após vários meses em fuga, acabaria por entregar-se às autoridades em junho de 2009. Em janeiro de 2010 foi condenado a sete anos de prisão, mas viria a ser libertado no ano seguinte no âmbito de uma amnistia.

Quase à imagem de Deus

Sete anos volvidos voltou a liderar uma revolta popular, mas desta vez a vitória sorriu-lhe. Agora tem pela frente talvez o mais difícil desafio com que já se deparou, que passa por corresponder às expectativas que 70% dos eleitores depositaram em si. A fasquia está alta, talvez demasiado alta. "As pessoas vão querer resultados depressa e isso não vai ser fácil na situação atual. A popularidade e os índices de aprovação vão necessariamente baixar", defende o politólogo Alen Ghevondyan.

Mesmo os críticos de Pashinyan, como Ruben Melikyan, reconhecem-lhe pelo menos o mérito de ter devolvido a esperança ao país. Mas, se essa esperança não for correspondida, não é impossível que o veneno do primeiro-ministro possa voltar-se contra si. "Agora as pessoas sabem que há ferramentas que podem usar, como bloquear as estradas e as ruas. Isso pode ser perigoso", defende Melikyan.

Pashinyan não se mostra preocupado com a responsabilidade que os eleitores lhe colocaram nos ombros: "Governar em maioria é um desafio, tal como governar em minoria também é um desafio. Os desafios são algo normal na vida política. O grande mérito da revolução que fizemos é que agora deixaram de ser necessárias novas revoluções. Agora as pessoas já sabem que o seu voto conta e nas próximas eleições podem votar contra nós", argumenta perante os jornalistas estrangeiros presentes para o entrevistar.

Em Gyumri, 120 quilómetros a noroeste de Ierevan, Pashinyan já tem direito a uma estátua. Foi a partir dessa cidade, a segunda maior do país, que, a 31 de março, o então deputado iniciou uma marcha em direção à capital, acompanhado por alguns apoiantes. Era o começo dos protestos contra a hipótese de Sargsyan vir a ocupar o posto de primeiro ministro. A estátua está longe de ser a única evidência de um culto de personalidade que por estes dias parece existir na sociedade arménia. A imagem do líder aparece reproduzida em t-shirts, bolos, capas de telemóvel ou porta-chaves. Por vezes retratam-no à semelhança de Deus. A idolatria não preocupa o primeiro-ministro. Questionado por um jornalista do El Periódico de Catalunya sobre os eventuais perigos desta adoração, Pashinyan desvalorizou o assunto: "Se as pessoas querem usar a minha cara numa t-shirt não posso fazer nada contra isso. Não é algo que seja promovido por nós".

"Não podemos falar em revolução"

Quase todos - ou por convicção ou por facilidade de discurso - referem-se aos eventos de abril e maio como uma revolução. Mas terá sido mesmo isso que aconteceu? "Não. Não houve uma mudança de regime político e, para já, tudo continua igual a nível das relações internacionais, da economia e da política de segurança. Não podemos falar em revolução", defende Armen Khachikyan, sociólogo e professor de História, em conversa com o DN.

Apoiantes ou detratores de Pashinyan, todos se congratulam pelo facto de as mudanças políticas terem ocorrido de forma pacífica, sem confrontações violentas com as forças de segurança. "Nos países pós-soviéticos as revoluções costumam ser sangrentas. Foi muito bom não ter havido sangue", sublinha Ruben Melikyan. Ainda assim, o analista atribui os méritos do pacifismo ao ex-primeiro-ministro e ex-presidente Serzh Sargsyan: "O principal responsável por não ter havido sangue foi quem estava no poder, porque não deu ordem para a polícia investir. Se foi uma revolução então foi uma revolução feita a meias por Sargsyan e por Pashinyan. Por outro lado, a sociedade estava pronta para tudo o que aconteceu graças aos avanços que já tinha havido a nível dos direitos humanos. As pessoas sabiam que não iriam ser espancadas e torturadas pela polícia. Isso deve-se a reformas implementadas nos últimos anos pelo regime de Sargsyan".

Pashinyan conseguiu virar de pernas para o ar a política na Arménia, devolveu a esperança ao país e cumpriu a promessa de organizar eleições livres e transparentes. Agora, depois de ter recebido mais de 70% dos votos, tem pela frente a tarefa de concretizar a "revolução económica" que apregoa em cada intervenção que faz, de erradicar a pobreza e de acabar com a corrupção que está enraizada nas mentalidades. Se conseguir, talvez os críticos lhe tirem o chapéu. Se falhar, talvez as ruas voltem a encher-se de gente. Independentemente do futuro, 2018 foi o ano em que Pashinyan surgiu como líder e rosto de uma "revolução" pacífica.

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