O legado de Lula
1. O inquilino deixa o Palácio
Às 11h59 do dia 1 de Janeiro de 2011, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva viverá o seu último minuto como chefe de Estado do maior país da América Latina. Levará debaixo do braço o globo terrestre que fez questão de levar de casa, há oito anos, quando entrou pela primeira vez no Palácio do Planalto, em Brasília, para a ampla sala presidencial com vidros à prova de bala. «Para ter a noção do mundo», justificou.
Deixará entregues às paredes os segredos, as polémicas e as grandes decisões que marcaram os seus dois mandatos de governo. Mas antes de fechar a porta, entregará a chave ao sucessor, que pelas últimas sondagens eleitorais poderá ser já definido amanhã, quando o Brasil vai a votos. Em caso de segundo turno, a 31 de Outubro. São as primeiras eleições, em 21 anos, sem Lula na corrida, embora o seu carisma tenha contaminado toda a campanha eleitoral.
O novo inquilino/a poderá ser uma «velha companheira» conhecedora dos segredos daquelas paredes. Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, PT, lidera com 51 por cento. Em segundo segue José Serra do Partido da Social Democracia Brasileira. Porém, é a ex-ministra da Casa Civil, «carregada ao colo» por Lula, conforme ironiza a imprensa brasileira, que conhece de olhos fechados o caminho até à sala presidencial.
Segundo a maioria dos especialistas entrevistados pela NS’, Lula deixa a casa «bem arrumada», que é como quem diz que, apesar dos escândalos, das gafes políticas, de extrapolar funções presidenciais, erguendo a bandeira petista e dos erros de português, o ex-metalúrgico que chegou ao mais alto cargo público do Brasil fez um «bom trabalho». Em síntese: deixou um «importante legado», sobretudo na «área social», diz Maria Hermínia Tavares do Instituto de Estudos Políticos da Universidade de São Paulo (USP).
Factos: a classe D ascendeu à classe C, passou a ter poder de compra e pôs os filhos na escola. A economia estabilizou, a inflação esteve sob controlo, Lula seguiu o plano económico do antecessor Fernando Henrique Cardoso (FHC), «consolidou a social-democracia», frisa Marcus Figueiredo do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, apesar de a raiz ideológica o seduzir a virar mais à esquerda.
No entanto, a saúde, a segurança, a violência, as políticas indigenistas, as infra-estruturas e a questão agrária continuam a ser cicatrizes mal saradas num país com 192 milhões de habitantes, aponta-se. Apesar das alfinetadas contra escândalos e o seu populismo, a voz rouca e gutural de Lula da Silva continua a desafiar a lei do ruído e acalenta a esperança de um país a cumprir-se.
2. Carisma, a cara do povo?
Lula de cigarrilha antes de uma entrevista. Lula brincalhão, espontâneo. Estes são alguns momentos captados pelo realizador de cinema João Moreira Salles para o documentário Entreatos, estreado no Brasil em 2004. De 25 de Setembro a 27 de Outubro de 2002, Salles acompanhou, estilo Big Brother, a campanha de Lula à presidência da República. Momento histórico: Lula seria eleito nesse ano, pela primeira vez, o inquilino número um de Brasília. «É muito difícil não nos deixarmos envolver pelo seu carisma natural», confidenciou o cineasta à plateia, no final da apresentação do filme, em São Paulo.
A meio do filme, Lula é entrevistado por telefone para uma rádio, enquanto o barbeiro lhe apara a barba. Da situação caricata, «o pai dos pobres», como é conhecido internacionalmente, salta para o embevecimento, carregado de premonição, dirigido ao seu fiel barbeiro. «Você imagina o que pode acontecer com você? Eu posso vir aqui, amanhã, como presidente eleito.»
Salles continuaria a desvendar, nesse encontro, a psicologia do Presidente: «Ele é exactamente aquilo que vemos na tela.» Lula para os amigos, Lula na vida pública: «Não há diferença.» E onde há legado aqui? «Na informalidade do discurso que transpõe para a arena política, que mais nenhum presidente teve», diz o cientista político Paulo Baía, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Tal o à-vontade que, em Dezembro do ano passado, Lula quebrou o protocolo numa cerimónia oficial. Retórica politicamente incorrecta. «Eu quero saber se o povo está na merda e quero tirar o povo da merda em que ele se encontra.» Aplausos. Multiplicação na imprensa. Polémica. Em oito anos de governo, coleccionou várias. A última: a meio da campanha eleitoral, a ministra da Casa Civil, Erenice Guerra, braço-direito de Rousseff, deixou o cargo sob suspeita de tráfico de influências.
Leandro Carneiro, analista político da USP, escarafuncha a ferida, para exemplificar a «recorrente e incorrigível» má conduta do ex-sindicalista. «Lula respondeu ao público como se fosse ele o defensor da ministra. Ele extrapola a função do Presidente, sai em defesa de quadros do seu partido e isso não é o que se espera de um chefe de governo.» Lula, então, uma espécie de Cândido de Voltaire: uma pressuposta (e falsa?) ingenuidade aliada à esperteza? O jurista brasileiro Hélio Bicudo confirma a hipótese, mas agrava a atitude do chefe de Estado num azedo tom de reprovação.
Fala à NS’ em «atropelos da democracia», que é ainda «formal» no Brasil. «Durante o governo do Presidente Lula, muitos pontos da Constituição e das leis foram pura e simplesmente pisados por eles, como o facto de o Presidente da República se transformar em marqueteiro eleitoral de Rousseff, candidata pelo PT.» As multas do Tribunal Superior Eleitoral são «insuficientes e leves». A pena, não hesita Bicudo, deveria ter sido um contemporâneo auto-de-fé: impeachment.
Mas o silêncio do cidadão brasileiro foi «pesado» e «condescendente». Só na última semana, com o crivo do jurista, é que um movimento civil elaborou um manifesto, Se Liga Brasil, para elevar o tom e protestar. Apesar dos cataclismos, empolados pelas acusações da imprensa de o PT a «amordaçar», a imagem de Lula continua blindada, com mais de oitenta por cento de aprovação.
O que mais surpreende os cientistas políticos é que essa imagem, neste final de segundo ano de mandato, «já deveria ter sofrido um desgaste». Hipóteses: «Lula quando faz certo, acerta, quando não faz nada também acerta e, quando faz algo errado, sai intocável», analisa Baía. Um «conciliador» que soube «negociar com todas as vozes políticas» e que «espelha os desejos e as frustrações de todos».
3. Brasil social
Para o cientista político Marcus Figueiredo, a popularidade de Lula tem «fundo histórico real, que está no avanço e no desenvolvimento social, na ascensão das classes mais baixas e na estabilidade económica». O popular Presidente chegou a afirmar que, antes de chegar ao governo, o Brasil era «terra de ninguém». Último balanço, em público, de dois mandatos: «Não fizemos tudo o que era preciso, mas estamos mostrando que tem jeito, que basta querer fazer as coisas.
Hoje, temos projectos, dinheiro e gente que sabe gerir, que sabe fiscalizar e que sabe executar. Também aprendemos a definir prioridades. Este é o legado que a gente vai deixar para o país.» Como previu nos anos 1940 o escritor austríaco Stephen Zweig: «Brasil, o país de futuro?» Perto: no ano passado Lula anunciava que o Brasil passaria de devedor a credor do Fundo Monetário Internacional, com o empréstimo de cerca de dez mil milhões de euros.
O conjunto de políticas sociais do governo Lula, enfatiza Figueiredo, como o Bolsa Família, o Fome Zero, o microcrédito, programa Luz para Todos – que levou electricidade a zonas remotas – crédito consignado, elevação regular dos salários, incluindo o salário mínimo, aumento sustentado dos empregos formais, sobretudo, levou a que a desigualdade social no Brasil, pela primeira vez, tivesse sido alterada de forma significativa. O maior grupo da população brasileira já não é dos mais pobres, mas de renda média. É a expressão da elevação significativa do nível de renda da massa mais pobre da população.
Uma ressalva, nota Hélio Duque, economista da Universidade Estadual Paulista, e que é martelada pela oposição: o avanço que marcou os últimos anos sustenta-se na «opção económica feita há 16 anos, no governo de Itamar Franco». «O que seria o Brasil sem o Plano Real?», questiona o economista, num artigo de opinião. «Foi a partir dele que se deu a autêntica revolução estrutural na economia brasileira, quando FHC foi eleito ministro da Fazenda, representando a sua consolidação», fundamenta. A estabilização da economia, eliminando a inflação histórica que desgastava o Brasil, «proporcionou o planeamento dos rendimentos públicos e privados».
O Brasil cresce hoje a um ritmo de 7,5 por cento. «Já cresceu no governo Lula mais do dobro do que com outros governos», diz à NS’ o economista e político brasileiro Aloízio Mercadante, próximo de Lula e autor do livro sobre oito anos de governo PT. «O país tem estabilidade, mostrou isso nesta grave crise internacional, criou mais de 13 milhões de empregos.» Uma «estabilidade» embalada pela conjuntura, salvaguarda Fábio Kanczuk, professor de Macroeconomia da USP.
«Temos crescido porque a China resolveu comprar os nossos produtos e o minério de ferro passou a valer mais, e isso puxa a nossa economia para cima.» Depois, impulsionada «pela política do crédito consignado», que catapultou o poder de compra dos brasileiros. «Foi um tipo de reforma que ajudou muito: o crédito gira na economia, melhora a demanda e permite que a pessoa suavize o consumo no tempo.» Antes era uma «proporção do PIB de vinte por cento, agora chega aos 45 por cento», complementa.
Todavia, uma economia com areias movediças: a carga tributária é ainda muito alta, o peso burocrático uma doença entrópica, as infra-estruturas uma guilhotina para o desenvolvimento. Neste último caso, o governo Lula lançou, em 2007, o Plano de Aceleração de Crescimento que, além dessa área, dá prioridade aos investimentos em saneamento básico, habitação, transporte, energia e recursos hídricos. Uma formalidade, pois «pouco ou nada se avançou», garante Kanczuk. Depois, a educação continua a ser de «baixa qualidade».
4. Cultura Lula
Maria Setúbal concorda com esta análise mas ressalva. A presidente do Centro de Pesquisa para Educação e Cultura de SP analisa que Lula deixa uma herança «importante», através do Plano Nacional de Educação. Ele também continuou os programas de FHC, mas melhorou-os. «Consolidou a universalização do ensino fundamental, com uma visão sistémica da educação: do infantil às universidades.» E, ainda que a taxa de analfabetismo no Brasil esteja na ordem dos dez por cento, a ampliação do programa de auxílio Bolsa Família, apoiando famílias carenciadas e que tem como contrapartida a permanência das crianças na escola, permitiu «progressos» na formação.
Lula não se esqueceu de tirar esse coelho da cartola, na semana passada, enquanto falava à imprensa, e elegeu a educação como seu «principal legado». Engrenou a máquina, anui Maria Setúbal, mas para a pôr a funcionar falta olear muitas arestas. Os desafios estão sobretudo, analisa, no ensino médio com currículos desactualizados, aliado a uma grande «evasão», e no «débil» ensino académico. Falta «melhorar a formação de professores e melhorar a avaliação das universidades».
Já na cultura Maria Setúbal é mais contundente na resposta. «Pela primeira vez, há uma política cultural no país, envolvendo a sociedade e as empresas com incentivos de apoio; com um aumento percentual no orçamento da União e um esforço de descentralizar as acções culturais do Sul e Sudeste para englobar o país como um todo.» Refere-se aos Pontos de Cultura, centros de apoio espalhados pelo país que valorizam o resgate de folclore e tradições. Figueiredo é menos optimista, falando em medidas paliativas para a área.
Mas a operação cirúrgica do governo Lula deu-se de forma subtil, sobretudo, na estrutura de uma cultura política «simbólica» e «única». Primeiro, conforme analisa o especialista em política brasileira da USP André Singer, numa marca pessoal que inaugura o adjectivo «lulismo». No artigo académico «Raízes ideológicas e sociais do Lulismo», Singer descreve o governo popular de Lula como «uma ideologia que mistura elementos de esquerda e de direita, que permitiu um realinhamento eleitoral em 2006», agarrando votos de eleitores de baixa renda.
Depois, a cultura Lula estende-se à forma como «aparelhou a máquina» do governo com «uma nova classe social ascendente: a do sindicalista», conforme retratava a revista Época em Maio deste ano. Interpretação da sociologia política: uma espécie de O Príncipe de Maquiavel actual, com a necessidade de basear as suas forças em «exércitos próprios». Segundo a revista, «nunca antes na história do país os sindicalistas e os sindicatos tiveram tanta influência como nos dias de hoje», moldando uma «nova espécie de capitalismo».
Ou seja: a nova classe participa como representante dos trabalhadores, dirige os fundos de pensão estatais e conselhos de fundo do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social, ganhando «poder de ingerência» sobre milhões de reais, aproximando-se de grandes empresas privadas, promovendo negócios e tornando-se numa «espécie de capitalista». É por esse legado também que Marcus Figueiredo diz que, qualquer que seja o novo inquilino do Palácio de Planalto, será difícil a engrenagem interna. Uma máquina viciada. E mesmo que seja a petista Dilma a herdar a casa do patriarca político, terá embaraços para controlar a «sede de poder» do PT, já que ela não é uma figura histórica do partido como Lula.
Calcanhar de Aquiles do governo brasileiro
Saúde, educação e segurança são os três pilares dos programas eleitorais dos principais candidatos às presidenciais de amanhã no Brasil. São também, curiosamente, as três principais feridas expostas de um Brasil hoje olhado pelo mundo como um país a alta velocidade, com apeadeiros de prosperidade. Para os analistas políticos, essa tríade, aliada à questão agrária e às políticas indigenista e ambiental, são questões em que o governo Lula falhou.
– «O Sistema Único de Saúde é uma reforma incompleta e o próximo governo precisa de dobrar os 3,6 por cento do investimento do PIB» (Gastão Campos, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas);
– As lideranças indígenas continuam a falar de falta de diálogo com o governo, acusando a Fundação Nacional do Índio de «incompetente e preconceituosa». No plano da Saúde Indigenista falam em «precariedade» e «atropelo de direitos fundamentais» (Jurandir Siridiwe Xavante, presidente do Instituto de Tradições Indígenas);
– Profundo problema no controlo do crime, sobretudo o organizado, tráfico de drogas, armas e lavagem de dinheiro, controlo de fronteiras (embora se tenha aumentado o contingente da Polícia Federal) bem como pouco fôlego na adopção de políticas de segurança pública: houve um «retrocesso», «desconstruindo a identidade do governo anterior»; Falta de medidas para combater a «corrupção política». (Leandro Piquet Carneiro);
– «Não foi possível expandir para a área agrícola o mesmo esforço que foi feito na área urbana, apesar de ter avançado com um grande programa de apoio rural às pequenas propriedades agrícolas e também ao agrobusiness: só que com esta relação entre pequenas propriedades agrícolas e a propriedade familiar, o PT não conseguiu o diálogo entre essas duas camadas da população rural em que permanece um conflito clássico.» (Marcus Figueiredo, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Rio de Janeiro)
– Em questões de meio ambiente há posições controversas entre sectores ruralistas e ambientalistas. A saída da então ministra Marina Silva, em 2008, por incompatibilidade com agenda do governo, e o recente caso polémico sob a gestão do actual ministro, Carlos Minc, com a adopção de uma medida provisória que visa a regularização fundiária na Amazónia, desagrada aos ambientalistas que a vêem como conivente com o desmatamento. No entanto, o reforço de acções de fiscalização e monitoramento aéreo têm ajudado a diminuir o flagelo;
Escândalos do governo Lula da Silva
Segundo os analistas políticos, há mais de cem escândalos contabilizados. A NS’ destaca os principais, desde 2003
– Suposta ligação do PT com o MST
– Suposta ligação do PT com as FARC
– Irregularidades do Fome Zero
– Escândalo do Ministério do Trabalho
– Operação Anaconda
– Escândalo dos gafanhotos (ou máfia dos gafanhotos)
– Várias aberturas de licitações da PR para compra de artigos de luxo
– Expulsão dos políticos do PT
– Escândalo dos bingos – primeira grave crise política do governo Lula;
– Escândalo dos vampiros
– Escândalo dos Correios – segunda grave crise política do governo Lula.
– Abuso de medidas provisórias no governo Lula entre 2003 e 2004 (mais de trezentas)
– Escândalo da hidroeléctrica de Itaipu
– Escândalo do mensalão – terceira grave crise política do governo
– Esquema de corrupção no Directório Nacional do PT
–Escândalo do Brasil Telecom – também conhecido como escândalo Portugal Telecom
– Escândalo dos dólares na cueca
– Escândalo Daniel Dantas – Grupo Opportunity
– Escândalo da Gamecorp – Telemar (ou Caso Lulinha)
– Caso dos dólares de Cuba
– Quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo – quarta grave crise política do governo Lula;
– Escândalo das cartilhas do PT
– Escândalo de corrupção dos ministros no governo Lula
– Crise da Varig
– Escândalo das Sanguessugas – quinta grave crise política do governo Lula;
– CPI do Tráfico de Armas
– Suposta ligação do PT com a facção criminosa Primeiro Comando da Capital
– Escândalo das escutas no Tribunal Superior Eleitoral
– Escândalo do Dossier - sexta grave crise política do governo Lula
– Crise no Sector Aéreo Brasileiro
– CPI do Apagão Aéreo – Câmara dos Deputados;
– CPI da Crise Aérea – Senado Federal e Câmara dos Deputados;
– Caso Renan Calheiros
– Operação Águas Profundas (Caso Petrobras)