O lado B da bola
O estranho caso em que nada acontece
Ocomentador desportivo entra no carro, gasta gasolina, deixa uma pegada ecológica, cumprimenta o segurança na receção, senta-se na cadeira da maquilhadora, aparece em direto no estúdio com os seus adversários clubísticos, que falam, gritam e se atropelam, diligentes e emocionais, sobre um lance de um jogo. Trata-se de um "caso", algo a desvendar - como o mistério do Estripador de Lisboa ou, em tempos, o paradeiro de Bin Laden. Escalpelizam, esmiúçam, exaltam-se, são prolixos e empenhados, conjugam o adepto de bancada com o doutor em leis, dispõem de bordões de júri de concurso de talentos e, como um futebolista, dão tudo em campo porque já não há equipas pequenas, é preciso muito trabalho durante a semana e cada jogo é um jogo. Para que tudo isto aconteça, foi preciso pagar a pessoas, usar energia elétrica, dispor de uma equipa técnica, utilizar recursos, tempo, células cerebrais.
Trata-se, percebo, do "caso foi mão na bola ou bola na mão", seguido pelo "mistério do fora-de-jogo" e "o enigma do segundo amarelo". Mas nada acontece, ou será antes que tudo o que acontece é nada? Desligo a televisão. O comentador continuará a falar e milhares, se não milhões, servirão de audiência do nada. O ecrã escurece na sala, esse sonzinho de eletricidade que se apaga e que anuncia toda a solidão apetecida da casa, o silêncio das noites de domingo, o bem que se alcança apertando apenas um botão.
Natureza morta com macho man
No café da rua, os três homens pedem as suas bebidas. Dois baldes de whisky. O terceiro elemento, talvez meditando sobre o facto de não ser ainda hora do lanche, indaga o empregado acerca da temperatura das minis, sabendo que, qualquer que seja a resposta, terá de ceder ao olhar desdenhoso dos companheiros. Esta vida não é para meninos que bebem cerveja em garrafinhas de bonecas. Na mesa, por fim: três cetros imperiais de whisky, pelo menos um bigode, as pernas abertas exalando testosterona, os olhos postos no futebol da TV e a conversa no jogo de ontem - a informação por via intravenosa a toda a hora, a telenovelização, os jornais, a necessidade de afirmação através de uma coisa em que nem sequer participam ativamente, a dependência do balbuciar imparável dos dirigentes.
De manhã à tarde ou à noite, estes homens parecem estar sempre naquele café, uma existência circular: a televisão a fazer de largo da aldeia, as liturgias e as homilias do futebol substituindo a novela, a religião, a terapia, os casamentos funcionais, o emprego, quiçá a falta de sexo.
Sei que não são sempre os mesmos, que uns bebem Licor Beirão e outros J&B, que uns fumam Gigante e outros Marlboro, que uns são do Sporting e outros do Benfica, mas suspeito que é mais aquilo que os une: não apenas essa mancha indistinta de masculinidade obsoleta - comer muito, beber mais, hostilizar o outro -, mas a sensação de que, enquanto zombies, se revezam todos os dias como consumidores da fábrica do nada.
O Gordinho e o Gadelhudo
Nestas noites de férias escolares, posso ouvir as suas vozes pré-adolescentes na sede do grupo recreativo, durante um jogo na TV, ou gritando "Passa, passa!", nas peladinhas no largo. O Gordinho e o Gadelhudo são uma dupla sem par, discutem transferências, analisam o futebol internacional, imitam os penteados dos seus ídolos e limpam os jogos todos com goleadas, em grande parte porque os oponentes, nas sessões de "dois para dois com balizas pequenas", ainda frequentam a primária.
No outro dia, um dos mais novos fez uma cueca ao Gordinho e soltei um Oh! de deslumbramento e de escárnio, tal qual fazia quando assumíamos os nomes dos jogadores da Laranja Mecânica de 1988, nos campos pelados da escola, ou quando vi o Figo sentar o Schmeichel e sorrir antes de atirar para a baliza, enfim, a superação do outro como parte importante e empolgante do futebol, de preferência com beleza e engenho.
Quantos anos desse futebol têm pela frente o Gordinho e o Gadelhudo até perceberem a contradição de amarem e de seguirem obsessivamente aquilo que é tantas vezes sujo, corrupto, ganancioso e inconsequente?
Talvez seja a minha inveja da inocência e do entusiasmo dos miúdos em relação ao futebol, algo que perdi há algum tempo; mas ponho-me a pensar que há coisas que envelhecem mal, o consumo glutão de bola faz parte da lista.
Despeitado pela cueca e pelo meu Oh!, ou como se soubesse que lhe estou a estragar as ilusões, o Gordinho pega no esférico e impõe-se, do meio-campo, com um petardo à baliza. Golo. Festejos de final. Depois, de cara séria, olha para mim como se para os adeptos adversários. Coloca o indicador à frente da boca. E manda-me calar.
*Escritor