O labirinto africano de Sean Penn

O novo filme realizado por Sean Penn suscitou muitas reações negativas entre a crítica do Festival de Cannes - com Charlize Theron num dos papéis principais, The Last Face aborda os conflitos armados no continente africano. Criticado, assume que fez um objeto de entertainment - "desde que entertainment não seja sinónimo do comportamento de Donald Trump", disse na conferência de imprensa.
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Desta vez, em Cannes, os caçadores de "escândalos" não tiveram sorte. Sean Penn e Charlize Theron surgiram pela primeira vez num evento público, desde a sua separação há cerca de um ano, pouco depois do festival de 2015, onde ainda subiram juntos a escadaria do Palácio (a atriz integrava o elenco de Mad Max: Estrada da Fúria, realizado por George Miller, este ano presidente do júri oficial). Desta vez, não foram as atribulações da vida privada que dominaram as atenções, antes um filme que, apesar de muito mal recebido pela maioria dos jornalistas e críticos (e também por causa disso mesmo), ficará como um dos momentos marcantes da 69.ª edição do certame da Côte d"Azur - chama-se The Last Face, foi realizado por Penn e tem Theron e Javier Bardem como intérpretes principais, compondo as personagens de dois médicos envolvidos amorosamente, tendo por pano de fundo as ações humanitárias em zonas de guerra no continente africano (recorde-se que Penn tem tido também um contributo significativo para ações desse género, em particular no Haiti).

Confrontado com acusações de simplismo e demagogia na abordagem de uma África rasgada por formas brutais de violência (que, aliás, o filme encena de modo muito gráfico e contundente), Penn manteve uma atitude de serena distanciação: "Assumo o filme tal como ele existe, sendo certo que qualquer um tem o direito a sua própria visão."

Não recusando que fez um objeto de entertainment, definiu-o também a partir da atualidade política: "Penso que esse é um elemento importante, desde que entertainment não seja sinónimo do comportamento de Donald Trump." E associou os valores do espetáculo à questão clássica da beleza: "Agora, o impulso é, muitas vezes, no sentido de nos afastar da nossa humanidade. Mas a resolução dos problemas passa pelo encontro com a beleza das coisas. Hoje, o que chamamos beleza é quase sempre uma perversão da própria beleza. E isso é lamentável."

Cinema político, o que é?

E fácil, de facto, atacar um filme como The Last Face: por ele perpassa a noção voluntarista, algo ingénua, de que basta ampliar (no tempo e na agressividade) as imagens breves de um clip televisivo para se encontrar uma visão mais "justa" da complexidade dos conflitos que assolam muitos países africanos. Mas convenhamos que também não e fácil defender o trabalho de Penn, sobretudo porque ele parece acreditar que basta colocar as personagens em ambiente "romântico", enunciando um discurso "panfletário" contra a violência com que lidam.

Para não deitar fora o esforço labiríntico de Penn (que considero, sem ambiguidades, humanamente genuíno e moralmente sincero), vale a pena deixar uma nota paradoxal. Assim, muitos cidadãos com posições públicas importantes (a começar por elementos da classe política) têm afirmado que uma parte considerável dos dramas humanitários em África poderia ser contrariada através de gestos políticos mais nítidos e incisivos, quer dos EUA quer dos países europeus. Que faz, então, com que essa mesma posição, quando enunciada pela personagem da médica interpretada por Charlize Theron, possa soar a coisa débil e inconsistente?... Digamos que, no mínimo, Penn não refletiu o suficiente sobre o que significa passar dos soundbytes das notícias para as subtilezas de uma ficção cinematográfica.

Em paralelo com a apresentação de The Last Face, o festival deu a ver (extracompetição) um filme que pode ser descrito como uma outra forma de entendimento da intervenção política através do cinema: Peshmerga, de Bernard-Henri Levy, e um documentário sobre a luta dos soldados kurdos que, no coração do Kurdistão iraquiano, fazem frente ao Daesh. Estamos, neste caso, perante um périplo de mil km, um verdadeiro "diário de combate" que Levy narra na primeira pessoa, aliás retomando experiências semelhantes da sua trajetória (em particular o filme Bosna!, de 1994, sobre os combates em Sarajevo). Se, nos nossos dias, a noção de "cinema militante" ainda pode ter algum sentido ativo e atuante, não há dúvida que o trabalho de Levy constitui uma das suas mais depuradas materializações.

Em Cannes

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