O Judas de cada dia vos dou hoje
A frase é, creio, de Oscar Wilde, e sobre os biógrafos. Seriam os "Judas de serviço", aqueles cujo interesse pelo biografado redundaria sempre, mesmo contra eles e as suas melhores intenções, numa traição anunciada. Decifrar uma vida será assim uma inevitável tresleitura, por maior que seja o esforço - e se calhar por isso mesmo - de "fidelidade".
A mesma reflexão se pode e deve fazer, pelas mesmíssimas razões, sobre o jornalismo, e sobretudo sobre o mais nobre dos géneros jornalísticos, a reportagem. A reportagem, salvo raras excepções, vive das pessoas, de lhes vasculhar a vida e a alma. Uma reportagem é tanto melhor quanto mais e melhor vasculhar. Claro que a ideia de que se pode entrar e sair da vida das pessoas, da casa das pessoas, da confiança das pessoas, das histórias das pessoas, do passado e do futuro e da alegria e da dor das pessoas, do olhar e da voz das pessoas, apenas e só para obter delas o máximo de informação, de frases, de pormenores e de coração, é uma ideia monstruosa.
Claro, dir-se-á - digo eu - que há entre o repórter e os objectos humanos da sua reportagem um contrato tácito. O contrato que diz: "Eu escuto, tu falas, e enquanto o que tu disseres me interessar, enquanto tu me interessares, eu oiço-te. Atendo-te o telefone a todas as horas, vou a tua casa quando me chamares, oiço até aquilo que não me interessa. Até me interessar ouvir-te." O repórter acha que o reportado sabe isso, tem de saber que ele, o repórter, não é um amigo caído do céu, um gémeo salvífico trazido pelo destino. O repórter acha que não está a enganar ninguém porque não mente, porque não diz: "Eu vou resolver o teu problema", "eu sou a solução". Não. O repórter não promete nada a não ser exposição, revelação. Às vezes um pouco de fama, a foto no jornal, a cara na TV, e os sonhos todos que vêm disso e por isso.
O repórter acha isso, tem de achar isso. Mas sabe também que há nele - e tanto mais quanto melhor repórter for - um mecanismo de empatia instantânea, um mecanismo que ele liga e desliga. Uma empatia que diz: "Confia em mim. Podes confiar em mim." E claro, claro que não é verdade.