O jovem maestro que descomplica a música clássica
O local é solene, a Sala do Brasão do Museu de São Roque e a atividade proposta é interpretar música clássica, mas o condutor desta sessão apresenta-se de calças de ganga e ténis. "O formalismo no encontro com a música clássica denota duas coisas: rigidez e respeito. A propósito do respeito, acho fantástico, porque é uma forma de arte superior e há que respeitá-la. Mas a rigidez, na minha opinião, não faz sentido. Não vestimos fato e gravata para ir para a sala ler Os Maias, nem nos vestimos a rigor para ir ler poesia, portanto porque é que devemos sentir que há um elitismo cultural, social, quando vamos ouvir música? Acho que a música deve fazer parte do nosso dia-a-dia, sempre que vou a concertos faço questão de ir tal como estou em casa e, por essa mesma razão, o público vai encontrar-me a mim vestido à civil, digamos, e a orquestra também." É esse tom informal e natural que Martim Sousa Tavares quer imprimir às sessões de apreciação musical, cujo ciclo coordena para a Temporada Música em São Roque, da Santa Casa da Misericórdia, que decorre de 12 de outubro a 11 de novembro. O ciclo de cinco encontros, que começou a 26 de setembro e termina a 23 de outubro, já está esgotado.
Martim Sousa Tavares começa por confessar que foi ele quem se fez convidado para levar estas sessões, que já fez anteriormente, à Temporada Música em São Roque e a aposta parece ganha. Logo na primeira sessão - "A música é uma porta aberta" - a sala enche-se para ouvir o maestro de 27 anos. Ao longo de duas horas, Martim passa em revista a essência da música: o ritmo, a harmonia, a melodia e o timbre. Pelo meio, pequenos excertos de música mostram na prática o que o maestro acabou de explicar. E nem só de música clássica se faz a demonstração. "Passo exemplos que não são de música clássica", de forma a "vermos como as coisas estão sempre a atravessar as fronteiras daquilo que é e não é clássico". Daí que o público ideal destes encontros seja de "pessoas que querem enriquecer-se", sabendo ou não tudo sobre música clássica.
Martim Sousa Tavares chegou aqui muito por culpa da mãe, a jornalista e escritora Laurinda Alves - ao pedido do filho que queria um cão, respondeu dando-lhe um piano, aos 7 anos. "Com o piano vieram aulas. Portanto, fui posto a tocar aquele instrumento sem nunca ter sequer pensado nisso e quando dei por mim estava já agarrado àquilo e todos os dias queria tocar."
Porém, o piano acabaria por ser apenas um degrau no caminho que queria verdadeiramente seguir: ser maestro. À medida que ia aprendendo a tocar, Martim ia percebendo que afinal o que queria era dirigir orquestras. "Nunca tive o sonho de vir a ser pianista, era um instrumento utilitário, que me dava muito jeito para perceber a música, de uma forma bastante ampla, e foi crescendo em mim uma consciência muito mais estrutural daquilo que é uma composição."
Apaixonado desde sempre pela música orquestral, Martim soube aos 15 anos que queria ser maestro. "Mas só tive a coragem de o dizer mais tarde, porque querer ser maestro é uma coisa completamente utópica, portanto guardei isso até aos 20 anos, mais ou menos."
Antes de aí chegar, fez todo o percurso escolar no ensino regular e só no ensino superior é que decidiu enveredar pela música. "Fiz o liceu público na área de Humanidades e a maior parte dos meus amigos acabaram por ir para Direito, Gestão, essas coisas normais. E eu nessa altura disse "então adeus, até à próxima, vou estudar ciências musicais"."
Acabada a licenciatura na Universidade Nova de Lisboa, que lhe deu a bagagem teórica, faltava a Martim a parte prática de direção de orquestra. Foi esse objetivo que o levou a Milão, onde estudou direção de orquestra durante quatro anos, e depois a Chicago, onde por mais dois anos fez um mestrado na mesma área, com um professor russo com quem Martim queria estudar "já desde há alguns anos". Recolhida a bagagem escolar, estava na hora de Martim Sousa Tavares se aventurar no mercado de trabalho.
Apesar do regresso recente a Portugal, no verão, o maestro já tem uma agenda preenchida. Juntou-se ao Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP) - e é o grupo Ensemble MPMP que o acompanha no ciclo de sessões de apreciação musical. No próximo ano, vão estar também juntos em vários projetos, como "o Prémio Musa, um prémio de composição", em que vai integrar o júri. Vai também estar envolvido nas comemorações do centenário do nascimento da avó, a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, nomeadamente na curadoria da Casa Andresen", e vai ainda arranjar tempo para dirigir concertos fora de Portugal.
O que Martim quer é estar "tão ativo quanto puder" - nomeadamente nas sessões de "degustação" de música, que já faz sozinho desde 2014, e que, agora com orquestra, vai tentar levar a outros pontos do país.
Ao projeto de levar a música clássica a todos os públicos, Martim quer sempre que possível juntar a direção de orquestras fora do país. É um defensor das escolas nacionais, mas gosta de "beber diretamente da fonte" e vai tentar trabalhar em vários países, tocando os seus mestres. "Tocar Sibelius com uma orquestra finlandesa deve ser uma experiência fantástica, como quem gosta de culinária e gosta de cozinha italiana tem de ir a Itália." Seguindo essa filosofia, Martim até já cumpriu um dos seus sonhos, neste verão. Tocou Dmitri Shostakovich e Igor Stravinsky, "os dois grandes compositores de São Petersburgo", com uma orquestra local, "para quem essa música é o idioma" nativo.
Por isso, depois de preparar as partituras e de ter na cabeça uma ideia do que queria, a abordagem de Martim foi a de dizer à orquestra que ia aprender com eles. "Quero que vocês me digam como é que isto se toca, isto é a vossa língua e eu quero aprender." No final, a orquestra fez o que Martim gostaria que eles fizessem e deixaram-no também fazer o que tinha imaginado. "Senti que quando cheguei ao fim do concerto era uma pessoa diferente e senti que todos os músicos fizeram essa viagem comigo. E espero que também o público tenha vindo a cavalo."
Por procurar sempre este resultado, Martim Sousa Tavares confessa que o seu sonho é o de continuar a "beber diretamente da fonte" e, nessa lógica, quem sabe um dia dirigir Puccini em Lucca, na Toscana...
É já na sexta-feira que começa a 30.ª edição da Temporada da Música, com o Coro Gulbenkian na Igreja de São Roque, em Lisboa. Mas a música estende-se a outros palcos, até 11 de novembro, como o Convento de São Pedro de Alcântara, o Mosteiro de Santos-o-Novo ou a Igreja de Nossa Senhora do Loreto. Os bilhetes custam três euros. Além dos concertos, neste ano há também um ciclo de cinco encontros de apreciação musical conduzidos pelo maestro Martim Sousa Tavares e com a presença do Ensemble MPMP, pensados para guiar o público à descoberta da música clássica e erudita, mas estes já estão esgotados - informação disponível em mais.scml.pt/tmsr. A iniciativa Pessoas e Causas é uma parceria do DN e da TSF com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), que pretende contar as histórias das pessoas que mudam vidas com o seu trabalho na instituição e as das vidas que foram mudadas por causa de um apoio, uma bolsa ou um prémio, nas várias áreas abrangidas pelo trabalho da Santa Casa.